quinta-feira, novembro 07, 2024

Exame admissional

"AO CHEGAR 
RETIRE SUA SENHA
NO GUICHÊ 1 
E AGUARDE ATENDIMENTO."

— Bom dia. Qual o nome da empresa? 
— Segue o corredor, primeira sala à esquerda, n. 1. 

 Peguei a senha P-14, sem a menor ideia do significado da classificação. 

 — Agora é só voltar para a sala anterior e aguardar chamarem sua senha. 

Volto ao manancial de expressões de ansiedade, cansaço e preocupações. Uma parte deles olha fixamente para a TV slim 42″ que exibe entrevista com o rodapé “Liberdade religiosa”, anunciando a chegada de uma caravana de serviços à população em Joaquim Gomes. Ao lado, a segunda TV slim 42″ anuncia senhas e guichês, com alerta sonoro que impede o foco em coisa outra — no meu caso, na leitura de Uma vida pequena, de Hanya Yanagihara —, enquanto os demais mantêm um olho nela e outro na tela do smartphone.

Extremamente incomodado pela ideia de realizar um exame admissional, já saí de casa cedo, pois informaram que o atendimento seria por ordem de chegada. Para minha surpresa, 17 minutos após a abertura da clínica a recepção já estava lotada. 

Me sinto cada vez menor na cadeira. Detesto ambientes hospitalares e/ou laboratoriais e toda a burocracia administrativa que antecede os procedimentos médicos — é como caminhar com a cruz até o calvário. De onde estou, ouço atendentes fazendo a entrevista inicial: “é hipertenso, diabético, tem alguma doença cardíaca? Você fuma ou bebe? Sua altura? Seu peso? Faz atividades físicas? Qual o seu estado civil (para quê isso interessa)? Seu telefone? Seus pais têm histórico de hipertensão e/ou diabetes? Já fez alguma cirurgia? A vacina da Covid, já tomou? Quantas doses?” Algumas atendentes baixam o tom da voz, curiosa e principalmente diante dos que pleiteiam vagas para auxiliar de obra — um pré-teste da saúde auditiva para ter ideia do nível de dano gerado pelos anos de exposição à ferramentas e processos ensurdecedores? Esse também é o momento em que a pressão é aferida, com aparelho digital a pilhas. 

 — Pronto, só é aguardar, viu? 

 Senha: P11. Guichê: 2. 

 O livro da Hanya, que até então me acompanhara nos ônibus para a Universidade, com frequência me acompanha nas entradas na emergência, principalmente nas inúmeras durante as duas últimas semanas, mais como âncora na realidade do que leitura de entretenimento, pois perdi a habilidade da atenção nessas situações. 

Os acessos deixam meu braço em posição incômoda, doem e me impedem de segurar o calhamaço com algum conforto. As técnicas de Enfermagem, os maqueiros, as funcionárias da limpeza — com carrinhos cujas rodinhas simulam os gritos de várias crianças em uníssono — caminham em todas as direções.

Senha: P13. Guichê: 1.

(Preciso ficar atento à bolsa de soro, o sangue voltando pelo acesso ao final da solução é um trauma do pós-morte de minha avó. Observei as outras pessoas até aprender a fechar a passagem sempre que as enfermeiras parecem ocupadas demais para isso. Sei que não é proposital, certamente eu mesmo não daria conta de todas as medicações, do acompanhamento dos retornos de exame, das liberações e dos pacientes que se negam tomar a medicação e esperam ficar bem apenas sentando na poltrona. Alguns reclamam da demora da liberação dos remédios pela farmácia, outros da falta de resposta ao apertarem a campainha da sala do eletro.) 

Às vezes fico encarando a capa do livro: essa descrição de orgasmo masculino que mais se aproxima de carranca de dor parece, agora mais que nunca, bastante apropriada. 

Senha: N36. Guichê: 4.

Pequenos grupos são orientados na direção do laboratório, que parece ficar em outro prédio, para realização das coletas. Excelente, tirar mais sangue: fiz três hemogramas em menos de uma semana, além do sorológico negativo (me senti pessoalmente ofendido, mas não muito, quando o médico insistiu sobre a janela de manifestação, mesmo após ter informado que meu último exame de HIV/Aids, sífilis e hepatite era de menos de 1 ano e que há 3 não me relaciono com outro homem).

Senha: P14. Guichê: 1.

Gesticulo com a senha para a atendente do Guichê 3, pois o atendente do Guichê 1 está com o P13, cuja chamada devo ter perdido, não por falta de interesse na contagem, mas por cansaço. Ela me pede para entregar a ele meus documentos, o faço prontamente; ele me pede para aguardar ser chamado e entra com minha identidade para os recônditos do corredor à esquerda.

Senha: N55. Guichê: 3.

De repente a sala se enche com o retorno do pessoal do laboratório. Só homens, por sinal, e numa profusão de perfumes tão diferentes uns dos outros e tão fortes que é como se a cada entrada uma grande luva de boxe ganhasse forma no ar e me acertasse o estômago, fico imediatamente enjoado.

O atendente do Guichê 1, muito jovem e atraente, chama o meu nome. Ele me desconserta, gaguejo (não tinha dado tanto atenção ao fato de que gaguejo, ao menos não até um rapaz pelo qual me interessei recentemente ter me alertado) nervoso.

Passo pela mesma sabatina, tenho minha pressão infantil aferida (11x8), assino papéis, registro a digital do polegar direito em aparelhinho e, por um instante, sinto que estou na biblioteca da UFAL dando andamento ao empréstimo de algum livro de poemas. O atendente do Guichê 1, muito jovem e atraente, faz seu trabalho enquanto beberica café preto em copo descartável — ele dá um gole e me libera para a segunda recepção, onde as pessoas passam a ter nomes, deixando de lado as sequências aleatórias de letra e números. 

Duas TVs led 21″ na parede: uma exibe os nomes, acompanhada da voz da atendente de uniforme cinza e prancheta na mão, que literalmente grita os nomes — tenho a impressão de que deseja alcançar os transeuntes; na outra, um Rodrigo Bocardi sereno e de terno cinza noticia o incêndio de um complexo de lojas populares, no Rio de Janeiro, imagino, com imagens aéreas em tempo real. Bombeiros apontam mangueiras de pressão para tentar conter o fogo. Do nada, um enfermeiro surge à minha direita, de jaleco bordado, e também passa a gritar nomes. 

Em meio a todo o burburinho de conversas, é impossível me concentrar em qualquer coisa e a campainha de chamada toca com frequência insana. Parece linha de montagem.

Placas suspensas indicam as direções das salas: 2 a 5, 2. Consultório médico; 3. consultório médico; 4. raio X; 5. Consultório médico; salas 6 a 9: 6. Consultório médico; 7. Eletrocardiograma, eletroencefalograma, espirometria (preciso lembrar de pesquisar o que é isso), acuidade visual; 8. Consultório médico; 9. Audiometria.

Uma moça ao meu lado comenta com a que está atrás de mim que há apenas um médico atendendo. 

Ótimo. Vou perder a última aula de literatura.

Da infimidade de minha mecha loura, tentativa de parecer a Vampira dos X-men, odeio profundamente o enfermeiro à direita e seus cabelos platinados, que, quando parado, mantêm intacto um topete muito bem modelado, mas que se move no alto da cabeça dele feito bailarina quando o movimento gera brisa.

8h59, sala 5. De fato, apenas um médico atendia (i.e.: dava bom dia, sem olhar, carimbava sua ficha, devolvia e desejava bom trabalho), mas 4 TVs trabalhavam intensamente.

Passo no último guichê para retirar os documentos, a atendente não retribui meu “bom dia”. Contudo, o papel diz que estou apto para trabalhar numa vaga que não exige diagnóstico para confirmar que eu realmente não estou: basta olhar para mim, corpo franzino, perda de peso contínua, mal tenho me segurado em pé.

***

4 dias e uma lesão na lombar depois, eu apenas confirmaria que não estava apto para nada daquilo.

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