domingo, abril 30, 2023

Aprendendo a lidar com escolhas (as próprias e as de outras): uma resenha de “A filha única” de Guadalupe Nettel

Há sempre vivências das quais só é possível fazer parte por meio de uma posição muito específica, por vezes restrita à observação, e que pode incidir no conforto da visão autocentrada. Isso acaba sendo comum na relação de homens com a maternidade, que tende a ser observada nesse meio sem todos impactos da experiência para a mulher. Da mesma forma, há sempre a possibilidade de participar desse momento desenvolvendo respeito, sensibilidade e empatia.

Assim, quando o foco é a relação mãe-filho, qual posição nós mesmos e os homens ao nosso redor costumamos assumir? Como podemos entender o nosso lugar ― seja como pais, filhos, irmãos ― diante do processo da maternidade? E, acima de tudo, como enxergamos a relação das mulheres ao nosso redor com a acolhida ou a recusa da experiência? O que é possível aprender a partir desse movimento?

Em A filha única (Todavia, 2022), a mexicana Guadalupe Nettel ― vencedora dos prêmios Antonin Artaud, Gilberto Owen e Anna Seghers, finalista do Herralde ― oferece ao público leitor não só uma, mas três oportunidades de redimensionar o olhar externo para a maternidade. A partir das histórias de Laura, Alina e Doris, o romance apresenta diferentes perspectivas sobre essa vivência, trazendo aspectos comumente enevoados no imaginário popular pela mística da abnegação que paira a figura da mãe. E nesse contexto a preocupação com enxoval, móveis decorados e cor da parede abre espaço para escolhas de outra natureza, a das expectativas, das frustrações e do medo como problemas com os quais a mulher pode lidar de forma constante no quesito (não) ser mãe.

Acompanhamos a trama pelos olhos de Laura, mulher independente na casa dos 30, feminista convicta que decide retornar para sua terra natal após se submeter a uma laqueadura. Trata-se de opção interessante para a narração, pois demonstra como a decisão de não ser mãe influencia seus modos de perceber e lidar com os dilemas enfrentados pelas demais. Na relação com Alina, por exemplo, a recém-operada dispensa cuidados diferenciados, típicos da convivência compartilhada desde a infância, mas isso não a impede de projetar na melhor amiga os próprios receios, quando esta revela o desejo de engravidar. Nettel costura com precisão as relações entre as duas personagens, com intenções já bem demarcadas ― Laura intervém no próprio corpo para não ter filhos, Alina faz o caminho contrário.

Mediante procedimentos de inseminação, são diversas as tentativas até que Alina finalmente consegue engravidar. Dentre as três personagens principais, é através desta que a escritora latino-americana explora os efeitos da maternidade em sua dimensão processual, do início ao inesperado desfecho reservado para a nova gestante. Alina vivencia o abalo do desejo de ser mãe com um choque de realidade que se desdobra a ponto de deixar em suas mãos uma das escolhas mais difíceis no livro.

Concentram-se aqui o fato da personagem em questão ser casada ― via explorada pela autora para dar as nuances da maternidade inserida nesse contexto, trazendo aspectos relacionados à sororidade, autoestima e ciúmes ―; o desenvolvimento de um quadro de ansiedade associado ao consumo; e uma ambientação hospitalar que nos aproxima do incômodo das sensações. A interação médicos-paciente, inclusive, é outro ponto preciso da narrativa, que dela se apropria para navegar a disparidade das posturas de médicos e médicas diante de certo diagnóstico. Quais os limites entre a ética profissional e a sensibilidade de quem compartilha vivências?

Se Laura e Alina são o antes e o durante, Doris é o depois ― vizinha de Laura, é uma mulher viúva e mãe solteira que se vê às voltas com o filho Nico e seus acessos de raiva. Aqui a premiada autora se apropria da relação mãe e filho propriamente dita, conferindo a ambas as partes os resquícios de uma presença masculina violenta, cujos ecos ultrapassam os limites entre vida e morte, e tenciona os arranjos familiares tradicionais. Abre-se o espaço para a narradora, que assume o papel de mediadora de conflitos ao se aproximar de Nico na tentativa de aliviar minimamente o sofrimento de Doris. O modo como a figura de Nico “penetra” sua opção por não ter filhos é curioso, pois, embora o garoto personifique, em alguma medida, tudo de que abdica com a decisão, Laura nutre por ele um carinho especial que a faz considerar a possibilidade de "adotá-lo" em certa altura do livro.

Reforçando a afirmação de Virginia Woolf em Um teto todo seu, Laura opta por viver sozinha num apartamento para finalizar a escrita de sua tese de doutorado, ao invés de ficar com a melhor amiga ou mesmo com a mãe. Aliás, a trama se apropria da relação mãe-filha para identificar a incidência da maternidade idealizada também nesse âmbito, de modo que Laura compartilha reminiscências com a própria mãe. Esta que, alarmada pela notícia da laqueadura, se encontra com a ideia de não ter netos correndo por sua casa e vislumbra na relação da filha com Nico a concretização desse desejo.

Laura é a linha de costura na agulha de Guadalupe Nettel. É o fio condutor da trama, perpassando e experimentando, a partir de sua negação, a maternidade de diversas perspectivas. Tê-la como narradora enriquece o texto, tanto pelo frescor que confere à narrativa, desassociando-a do ideal de maternidade comumente reproduzido nos livros que se propõem uma abordagem mais superficial quanto por situar a discussão sob uma visão crítica.

Por tudo isso, para além dos contextos isolados a partir dos quais a leitura nos move a repensar o ato de (não) ser mãe, a posição tomada por Laura funciona como uma metáfora para o “olhar de fora”. Nesse sentido, trata-se de uma leitura que contribui para interromper o ciclo de naturalização da maternidade como requisito para que as mulheres se sintam felizes, plenas e completas, que invalida qualquer decisão contrária a essa estrutura.

É interessante como Nettel explora ausências e presenças masculinas, posto que são poucas as personagens do sexo masculino no texto. E essas “presenças” também são aplicadas como algo de uma metalinguagem, de modo que leitoras e leitores atentos as entenderão como mais um recurso muito bem aplicado. Através de presenças residuais e resquícios fantasmagóricos, ressalta a premência do olhar que toma a mulher como sujeito de direito e da promoção de apoio em suas decisões, bem como no questionamento da maternidade como única via de realização, como vivência que ratificaria a experiência de ser mulher.

Assim, A filha única constitui-se um convite para sairmos da zona de conforto, entendendo o quanto as mulheres têm tido o espaço relativo às decisões sobre seus corpos, seus caminhos e o curso de suas vidas negligenciado pelo poder público, pela sociedade como um todo e, muitas vezes, por aqueles mais próximos delas. É uma obra incisiva, um livro que todos os pais, filhos, irmãos e maridos deveriam ler para repensar privilégios, posturas e comportamentos ― esforço necessário no sentido de superar posicionamentos que reforcem os tabus em torno da mulher e da maternidade.

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