domingo, março 20, 2022

Escrever receitas, fermentar afetos: cozinhar como gesto para além prato entregue à mesa

É claro que eu não poderia deixar de ter um caderno de receitas

Cresci numa casa onde todos cozinhavam. Minha avó preparava pratos festivos como ninguém, meu avô era muito bom com carnes e ensopados e minha mãe, assumindo o trabalho pesado, cuidava das refeições diárias. Tínhamos o costume de receber muitas pessoas em casa nos finais de semana, quando a movimentação na cozinha era sempre mais intensa. À época, ainda na infância, eu estava sempre presente nesse espaço — roubando fatias de queijo e presunto ou enfiando o dedo na massa de algum bolo por pura diversão.

Com o passar do tempo e estimulado pelas mulheres da casa, comecei a preparar meus primeiros bolos de massa pronta e, aos poucos, a arriscar o pê-efe nosso de cada dia. Bem antes dos 18 eu já sabia o básico para reunir colegas de escola em almoços organizados com a contribuição de todos (a essa altura do campeonato as coisas já tinham apertado). Mas a compreensão do real significado da culinária só viria anos depois, com a necessidade de assumir o preparo das refeições básicas de casa.

O ato de cozinhar se associou ao do cuidado com as questões de saúde da família, implicando na redução do uso de sal, açúcares e condimentos com os quais estávamos habituados, e coincidindo com períodos difíceis em termos de renda. Isso me levou a pesquisar, redescobrir os usos de grãos, hortaliças e especiarias, a buscar alternativas possíveis para que o dia a dia na mesa fosse mais leve e saboroso — principalmente para minha mãe, hipertensa, diabética e recentemente acometida por um AVC —, sem aumentar os gastos. Em paralelo, no meu último relacionamento pude acessar a aproximação com a memória afetiva, resgatando pratos das nossas infâncias e (re)criando essas recordações de forma conjunta, no café da manhã, nos almoços pontuais às 12h00 ou nos lanches da tarde (quando dava vazão à criatividade, dentre outras coisas, no preparo de bolos).

Meu bolo de chocolate recém saído do forno

Da infância até esse ponto, foram inúmeros os bolos solados e as tentativas de lidar com a alquimia da farinha de trigo peneirada, da porção exata de fermento, dos ovos em temperatura ambiente. Levei tempo para descobrir que bases para bolos com gordura líquida são feitas no liquidificador, enquanto os amanteigados são batidos à mão ou na batedeira. E descobri que para bolos de chocolate as formas são untadas com trigo e cacau em pó, para não manchar de branco ou criar uma crosta de chocolate queimado ao redor da massa, das piores formas. Um episódio infame do qual nunca esqueço é o desse dia em que preparei uma surpresa de abacaxi para receber dois colegas e, pela medida de creme de leite, terminamos os três com dor de barriga.

Quando comecei a acertar e ver o brilho nos olhos de minha irmã na primeira mordida em algum preparo meu, o orgulho no rosto de minha mãe e o homem que me beijava passando a língua nos cantos da boca para não perder nada da cobertura de chocolate eu entendi que cozinhar é um gesto consciente de amor. E então desejei repetir essas sensações e comecei a perceber as pessoas me pedindo esse ou aquele prato porque "era muito bom" — não esqueço meus colegas de faculdade me fazendo enfrentar a linha Pontal/UFAL, agora extinta, com seus pedidos. Cozinhar se tornava cada vez mais satisfatório, apaixonante.

Outra prova viva da dimensão afetiva da culinária é sua relação com a escrita. Quando minha avó faleceu, minha mãe me entregou todas as suas cadernetas de anotações, receitas escritas nos versos de talões, carnês e rótulos, revistas e livros de receita comprados nos catálogos Hermes e Avon ou na banca de revistas em frente ao supermercado que costumávamos frequentar. Hoje tenho meu próprio caderno de receitas (cheio de firulas, como não poderia deixar de ser para um amante de papelaria), mas guardo como um tesouro o conjunto das coisas de minha avó. Minha lasanha é uma receita original dela, com o diferencial de que eu mesmo preparo a massa ao invés de usar a pronta, e o bolo gelado de coco que faz sucesso no meu trabalho também. Em tempos de dependência e pressa fomentadas pelos recursos digitais, escrever e copiar receitas se tornou um meio de ancorar o corpo e devolver a escrita para o papel.

O ideal é esperar o bolo esfriar para cortar, rechear e cobrir

A tudo isso se mistura o rigor terapêutico da culinária, outro ponto em comum com a escrita. Em ambas as atividades nós inscrevemos emoções, dosamos efeitos e combinamos ações com o silêncio. Os sons, os cheiros, os sabores nas pontas dos dedos ou nas colheres e espátulas, as cores dos alimentos se confundem com a textura do papel, o carvão do lápis, a cor e o cheiro da tinta da caneta. A cozinha poderia, sem dúvidas, ser classificada como o lugar de exercício da harmonia; ela é o coração da casa e pode muito bem ser o caminho, a porta de entrada para o contato com o próprio coração (bem como a escrita). Só não vale salgar os preparos com lágrimas!

Por fim, uma "chuva" de chocolate meio amargo

Essa predominância do cuidado/afeto, portanto, é importante pois tanto diz respeito ao outro quanto ao próprio indivíduo que cozinha, dando espaço para a carga política do gesto: a independência culinária anda de mãos dadas com a boa alimentação. É libertador fazer a própria comida sem precisar da anuência de alguém, sem estar refém de industrializados e/ou dos aplicativos de entrega, desde que você possua os meios necessários para esse tipo de alimentação. Por isso, falar de comida e política é também falar sobre nutrição e distribuição de renda, reconhecendo o Brasil como um país no qual, só em dezembro de 2020, 116,8 milhões de cidadãos não tinham acesso pleno e permanente a alimentos em meio à pandemia.

Por esses e outros motivos, passei a valorizar ainda mais o ato de alimentar o outro e tudo o que está envolto nele. Hoje, em meio às minhas próprias dificuldades, sigo tentando fornecer às pessoas no meu convívio um pouco de afeto e cuidado, demonstrar um posicionamento político através da preparação mais simples, como o bolo de chocolate que ilustra este texto. Gosto de pensar nos bons momentos e lembranças que uma fatia pode render e na possibilidade de comer bem, no sentido da ingestão de alimentos saudáveis, com o pouco que me é possível dividir. Por isso me dá gosto e, de certa forma, emociona proporcionar momentos como esse.

E voilà! Bolo pronto!
Todas as fotografias são de autoria própria.

Nenhum comentário: