Foto: reprodução instagram Arte de Wanderson Petrova Cavalcante, em muro no Cariri |
[Texto arquivado desde idos de março de 2022]
Junte pessoas com personalidades distintas num ambiente com regras próprias, esprema “entretenimento” de pautas sociais em relações improváveis e abra uma conta no banco. Você terá não só a receita de sucesso do Big Brother Brasil como também uma reprodução fiel do capitalismo em escala reduzida e baseada nos usos da imagem como força de trabalho. Não é necessário esforço para fazer acontecer: a manipulação da dinâmica do jogo midiatiza vivências e problemáticas próprias de algumas minorias, contribuindo para mascarar preconceitos como preferências. O público adora isso e a eliminação de Vinicius (Vyni) ratifica a afirmação.
Pense em Jean Willis, negro, nordestino e o único homem gay a ganhar o BBB em vinte e duas edições, privilegiado pela postura aproximada do ideal de masculinidade em tempos nos quais ser homossexual na TV aberta só comportava existências entre o discreto e o caricato. Agora pense em Gil do Vigor e Vyni, ambos negros, nordestinos e gays afeminados com trajetórias de jogo distanciadas de Willis e também entre si — mesmo sendo contemporâneos em um momento sem precedentes quanto à comercialização/consumo de identidades LGBTQIA+. Por que Gil caiu nas graças do público e Vyni foi tão criticado? A crença de que a diferença na recepção desses dois foi definida apenas no jogo e pelo gosto do público predomina devido à comodidade da visão limitada.
Pense em Jean Willis, negro, nordestino e o único homem gay a ganhar o BBB em vinte e duas edições, privilegiado pela postura aproximada do ideal de masculinidade em tempos nos quais ser homossexual na TV aberta só comportava existências entre o discreto e o caricato. Agora pense em Gil do Vigor e Vyni, ambos negros, nordestinos e gays afeminados com trajetórias de jogo distanciadas de Willis e também entre si — mesmo sendo contemporâneos em um momento sem precedentes quanto à comercialização/consumo de identidades LGBTQIA+. Por que Gil caiu nas graças do público e Vyni foi tão criticado? A crença de que a diferença na recepção desses dois foi definida apenas no jogo e pelo gosto do público predomina devido à comodidade da visão limitada.
A expectativa colocada sobre Vyni traduz a violência histórica da imposição de papéis ancorados no racismo contra o homem negro, além da contínua investida para definir um parâmetro de validação para o que é ser gay. O discurso do mérito justificado pelo “mirou no Gil e acertou no Victor Hugo” funciona como uma alegoria da construção da sexualidade do homem negro no senso comum — não deveria ser necessário escrever sobre como a promessa da repetição do sucesso é mais um rótulo —, imprimindo frustrações em suas relações afetivas para consigo e o Outro. E essa mensagem, agora meme nas redes sociais, anula ainda uma série de determinantes específicos da questão racial em detrimento da sexualidade (Victor Hugo é um homem gay branco), desconsidera privilégios e retoma o estigma da impossibilidade de relações de amizade desinteressada entre homens gays e héteros.
O ódio e os ataques homofóbicos gratuitos direcionados ao Vyni na internet, basicamente em torno das comparações com Gil e da aproximação com Eliezer, reforçam a centralidade da masculinidade heterossexual e cisgênero na sustentação do microssistema BBB. O brotherhood, o círculo de proteção e perpetuação do machismo, da edição 22 segue o caminho da reinterpretação do BBB10, cujo campeão se desculpou recentemente por ter defendido o “orgulho hétero” e a “resistência hetereossexual” à época. Em meio a grandes chances de outro resultado como esse, a importância de termos homens gays e afeminados ocupando tais espaços é desconsiderada, assim como o peso da história e das necessidades objetivas desses participantes.
Mas o centro da preocupação do público, a lente de aumento sobre todas as ações de Vyni foi (e continua sendo) a amizade com Eliezer. Toda especulação sobre um possível interesse romântico é agenciada pela ideia da aproximação interessada, perpetuando a leitura da pessoa negra como aquela que busca se beneficiar da relação, e torna-se ainda mais violenta ao desconsiderar as vivências do homem negro, gay e afeminado. A dinâmica societária e sua sucessão de preconceitos busca limitar essa existência a um não-lugar, a esse espaço de significação no qual as únicas possibilidades são a do objeto de fetiche e a da servidão afetiva — uma trama tão agressiva que inviabiliza a percepção de si nesse imbróglio.
Com isso em mente, uma avaliação dessa tendência à entrega diante de demonstrações de afeto transcende a carência individual, refletindo o processo ao qual as relações afetivas negras e LGBTQIA+ estão submetidas no capitalismo, relações desejadas na mesma medida em que desconhecidas. Na dobradinha Vyni e Eli, cabe ainda a reflexão sobre como Eliezer se localizava nessa posição que, consciente ou inconscientemente, não deixou de ser cômoda para ele. Não se trata de duvidar da legitimidade do sentimento, mas de entender que o cuidado em não transmitir mensagens dúbias, não necessariamente colocadas através de palavras, é um exercício incômodo, pois desconstrói normas, sem deixar de ser algo próximo de uma reparação histórica.
Qualquer audiência com o mínimo de consciência política deveria compreender como é importante o resgate dessas aproximações e distanciamentos como forma de atentar para o racismo, a homofobia e a xenofobia performados nas entrelinhas. E identificar os discursos por trás das comparações e da "preferência" para entender como contribuem na reprodução dessas violências e ratificam a ideia de diversidade que só é endossada pelo público em geral porque parte de uma perspectiva normativa e da comercialização da imagem. O mesmo serve para a militância problemática dentro dos movimentos sociais, que tantas vezes presta um desserviço com a homogenização nas leituras acerca daqueles que dão a cara à tapa na mídia popular.
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