quarta-feira, setembro 01, 2021

"Um preto presente em meu próprio corpo": entrevista com Gabriel Sanpêra

Intervenção em foto de Bia Ferrer (2020)

Tenho pensado, desde a última edição desta newsletter, sobre os rumos que daria a ela a partir de então. 2021 chegou e eu decidi colocar em prática a ideia de trazer para esse espaço pessoas negras LGBTQI+ com fôlego para insistir na produção literária em tempos tão difíceis. Para começar, uma breve conversa com Gabriel Sânpera (Rio de Janeiro, 1997), poeta, estudante Letras e autor de Fora da Cafua (Urutau, 2018). Em seus textos, Gabriel trata de questões do cotidiano de pessoas negras, LGBTQI+ e periféricas com um voz jovem e potente, carregada de forças que fazem o eco durar. Seu texto é muito bonito e cativante, me tocou muito durante a leitura, então foi um prazer poder bater esse papo!

Hyago: Como nasceu sua relação com a escrita, em especial com a poesia? Em que momento você se percebeu escritor?

Gabriel Sanpêra: Essa pergunta é interessante. Porque acredito que me sentir escritor fez parte de um processo que envolve autoestima, afirmação no espaço e morte da síndrome do impostor. Pois vejo muitos corpos pretos e sobreviventes da escrita, neste espaço de sempre, negar a nomenclatura. E eu, por muito tempo, neguei a nomenclatura de escritor por me sentir roubando um espaço que não era meu.

H: Pode nos contar um pouco sobre o seu processo de escrita?

GS: Adoro falar sobre! Eu possuo diversos álbuns de fotografia de minha bisavó e uma grande meta é poder entregar ele de volta para ela com novas construções e propostas visuais. Passei os últimos anos bisbilhotando fotos presentes neste álbum e descobri que minha bisavó, que está viva, sempre anota atrás das fotos. Então escolho uma fotografia para estudar dentro deste álbum e assim inicio meu processo de escrita. Algumas fotos me fazem reviver. Noutras eu conto a estória novamente pra promover o triunfo e, caso seja necessário, troco os personagens presentes na estória e faço esse jogo de recontar as estórias de família sobre a minha ótica.

H: Em entrevista para Lívia Mandarino você falou da sua contribuição na coletânea Letra e tinta, da Editora Malê, e a reação das pessoas ao texto – crônica que trata da abordagem policial de dois jovens. Foi o seu primeiro trabalho publicado por uma editora? Você lidou com muitos autoquestionamentos a partir dessa recepção que considerava o texto “pesado” por trazer temas como o da repressão estatal?

GS: Sim! Eu por muitos momentos senti medo. Quando um texto sai no espaço, ele deixa de ser nosso e se torna público. E como falo de memórias presentes e em alguns momentos delicadas, fico sempre em observação sobre como vão interagir com isso após ver por aí, circulante.

H: Para o Fora da Cafua (Urutau, 2018), seu primeiro livro, você escolheu trabalhar com a poesia, gênero que ganha outro significado a partir das vivências das pessoas negras. A própria estruturação da sociedade, da língua portuguesa e da compreensão geral desse gênero acaba gerando tópicos de validação para determinar o que é ou não poesia, bem como se é ou não boa. Você lidou com esses entraves em algum momento durante a concepção do livro?

GS: Durante meu processo, gosto de trazer os relatos escritos de forma misturada. No livro trago poesia, prosa, prosa poética e crônica. Gosto de promover essa quebra da normalidade sobre o que se entende como livro perfeito. Entendo que cada coisa vivida eu quis contar dentro de um formato, por necessidade do momento ou algum fator que me direcionou no momento de “contar”. No livro, em alguns momentos inicio algo em poesia e termino em prosa, por exemplo. Acredito que é o comportamento de um relato vivo, que pode tomar outras roupagens durante a estória.

Capa de Fora da Cafua (Urutau, 2018).

H: Além dos temas anteriores, você traz ainda negritude, ancestralidade e amor entre homens negros. Esse último aspecto é algo que, enquanto negro e LGBTQI+, sempre sinto falta nos textos de autores negros aos quais tenho acesso – majoritariamente escritos por homens negros heterossexuais. Como foi a recepção desse trabalho, em especial entre pessoas negras e LGBTQI+?

GS: Foi uma recepção importante para mim. Pois, pude ouvir relatos de diversos homens negros sobre como lidam com as emoções em seus afetos afrocentrados, interraciais e afins. Pude entender que estou em constante observação. E me senti, ao mesmo tempo, incomodado por ver que o tema ainda não está no cenário das escritas com a possível roupagem que deveria. Estamos nos curtas e documentários em relacionamentos interraciais. Quando estamos em comunidade, estamos em violência, contraponto ou isso acaba se tornando um evento único, aclamado. O que deveria ser mais visto e rotineiro.

H: Entre os poemas há alguns com uma forte noção de matricialidade, que também é algo muito caro para mim. Ela se dá através dessa presença religiosa, que o envolve o livro desde a capa, em versos como “minha mãe tem o segredo das cachoeiras/e caminha certeira nas matas de Odé”. Esse recurso também enriquece seu texto ao trazer os aspectos culturais das religiões de matriz africana. Qual o significado dessas presenças no seu trabalho?

GS: A presença de elementos religiosos e de crença expandida trazem imagens de um período muito importante para mim. Sou de família predominantemente evangélica e o contato com a Umbanda/Candomblé me tornou um preto presente em meu próprio corpo. Eu sou um corpo retinto, mas os elementos e referências do cristianismo sempre me aproximaram de uma aceitação parda. E trazia estes discursos ao me descrever. Algo que, ainda bem, mudou com a transição religiosa. No texto gosto de trazer elementos que ajudem a aproximar curiosos. Entendo que o espaço educativo pode ser relevante para que estórias de verdade escorram.

H: Fora da Cafua foi totalmente escrito no bloco de notas do seu celular. Isso remonta questões de acesso à escrita e seus meios, expondo a relevância das tecnologias nos processos de elaboração do trabalho de escritores/as negros, periféricos e dissidentes, além de sua influência direta como canais de autopublicação e disseminação das nossas vozes. Como você percebe essas questões nos dias de hoje?

GS: Percebo como importantes pois vejo uma movimentação grande de escritores “não publicados”. E neste ponto estamos falando de escritas não publicadas por fatores econômicos, sociais, e até mesmo por um não flerte com mercados editorias, como a resposta crescente de publicações independentes em crescimento. Eu acompanho um crescimento de escritas que não se querem movimentar para formatos de livro. Acho que é uma movimentação que temos de acompanhar e somar, pois nunca foi apenas sobre o impresso. A palavra está em movimentação para campos de disputa-circulação não impressos, em meu ver.

H: 2020 foi um ano difícil. Para além da pandemia, tivemos de lidar com os processos movidos pelo racismo e que culminaram na perda de tantas vidas negras. Mas também observamos a reação das pessoas negras aos ataques e as proporções por ela tomadas. Esse contexto impactou sua escrita de alguma forma?

GS: Sim. Sou escritor e faço parte da realidade de pretos que possuem ocupações profissionais em outros espaços e exercem a arte em modalidade dupla. Acredito que o artista preto em alguns momentos vive o processo de adquirir recursos em um espaço que entende-se como emprego para sustentar o que entendemos aqui como trabalho (escrita).

H: Você está trabalhando em um novo livro? Quais os seus planos para o futuro?

GS: O novo livro virá em abril. Ele se chama A Ossada de um Moleque e nele trago relatos de quintal, ruas e cenas vistas do corpo de um moleque. Mas esse processo foi diferente para mim, pois pesquisei mais sobre elementos do surrealismo na escrita preta. Pois, para nós, elementos de realidade são sempre mais empurrados-aproximados que o direito ao abstrato e subjetivo.

H: Poderia deixar uma mensagem para os escritores negros e LGBTQI+ que estão começando agora?

GS: A mensagem que deixo é que não desistam de circular seus escritos. Existe um senso comum errado no meu ver, que aprova e certifica escritores apenas quando estão em movimentos de publicação. Mas o livro é apenas uma etapa do processo. Não acredite que o livro é o resultado de seu processo. Ele é um meio/transporte. E acredito que é muito importante também que a gente assuma ferramentas e linguagens que criam formas para nos afastar de meios de publicação, divulgação e veiculação de nossas escritas. É importante entender o funcionamento de um edital, de um contrato de publicação. É importante entender como falamos de dinheiro e preço do que queremos levar ao espaço da venda, pois isso é dado como informação inicial a um escritor branco que publica desde os 16 anos e possui o que chamam de “mercado editorial” aberto a si, com possibilidades. Procurar também comunidades de publicação e editoras, pois é sempre importante depositar seus escritos em um local que dialogue com sua escrevivência.


Fora da cafua está disponível para compra no site da Urutau, você pode adquiri-lo clicando aqui. Letra e tinta, coletânea de contos vencedores do Prêmio Malê de Literatura, está disponível para compra no site da Editora Malê. Você acessa clicando aqui.

Para mais sobre o Gabriel, você pode acessar o blog Escrito marrom, que contém textos e poemas, o perfil dele no medium ou instagram.

A ossada de um moleque, o novo livro do Gabriel, saiu pela Oriki este ano e pode ser adquirido neste link.

*Este texto foi originalmente publicado na minha newsletter.

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