domingo, agosto 17, 2025

Liturgia do gozo: políticas de registro poético

O êxtase feminino na Bíblia, em Santa Teresa d'Ávila, Hilda Hilst, Raquel Naveira, Olga Savary e Adília Lopes


De "Spanish Colonial Designs of New Mexico" (1963-1942),
artista desconhecido. Reproduzido de RawPixel.

I

Primeira canção
A noiva

² Que os seus lábios me cubram de beijos!
O seu amor é melhor do que o vinho.
[...]
⁴ Leve-me com você! Vamos depressa!
Seja o meu rei e leve-me para o seu quarto.
[...]
Ela
¹⁶Como você é belo, meu querido
Como é encantador!
A grama será a nossa cama;
¹⁷os cedros serão as vigas da nossa casa,
e os pinheiros serão o telhado.


Os versos iniciais do Cântico dos Cânticos antecipam o tom erótico do livro e concentram uma de suas referências mais explícitas. Ébria de desejo, a noiva exulta uma paixão envasada e avassaladora que eclode na ânsia comunicada de possessão, de calor e rubor, no convite para que o amado a leve para o quarto. A urgência do sexo é retomada quando a noiva sugere que se deitem ao ar livre, o gesto de fundação do leito no qual seus corpos entrariam em choque, mas também da ideia de pertencimento, de lar enquanto espaço de segurança, gozo e satisfação ancorados na presença física do Outro.

Leituras ortodoxas do Cântico dos Cânticos o compreendem como alegoria do amor de Deus pela Igreja, enquanto as que se fazem mais flexíveis o consideram um livro que evidencia o casamento, a lealdade e o estrito aproveitamento do prazer sexual nesse espaço. Aqui me distancio de ambas para contemplar e conferir breve destaque ao erotismo transversal não só ao texto em questão, mas a toda a história da Igreja, desde a sua iconografia até as experiências de fé de devotas e santas, dentre as quais gostaria de destacar Santa Teresa d’Ávila (1515-1582).

Parto daquela percepção de preenchimento e ocupação de espaços físicos deixada pelo Cântico para recordar o popular episódio do êxtase da Santa quando do encontro com o querubim.

[...] Via em suas mãos um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e chegava às entranhas. Ao tirá-lo, me parecia que as levava consigo e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar pequenos gemidos, e tão excessiva suavidade que põe em mim essa enorme dor que não há como desejar que se tire nem se contenta a alma com menos do que Deus (d’Ávila, 2010, p. 267-268, grifos nossos).

As possibilidades de leitura, assim como no Cântico, perpassam a interpretação de experiências diretas entre Deus e sua serva Teresa. Mas me interessa particularmente a expressão de volúpia nas palavras avizinhando-se a uma descrição do ato sexual da penetração, percepção adensada pelo vocabulário fortemente imagético e que encapsula o falo na metáfora do dardo de ouro grande — a ardência da glande expandida, pulsando os vasos à mostra. Também o movimento descrito sugere estimulação e, em síntese, a Santa e primeira doutora da Igreja se aproxima e se apropria de recursos poéticos igualmente úteis para dar vazão a experiências carnais, eróticas e mediadas pela representação do Amor Divino, sem necessariamente romper a delicada trama de seda branca que os separa.

O milagre de Santa Teresa se chama transverberação. Fato rigorosamente processado na alma, mas cuja dor — pois trata-se de algo experimentado na nervura entre dor e júbilo —, a depender da intensidade, pode até chagar. Nas palavras de São João da Cruz (1960, p. 131): “[...] Quanto mais intenso é o deleite, e maior a força do amor que produz a chaga dentro da alma, tanto maior é também o efeito produzido na chaga corporal, e crescendo um, cresce o outro”. Amor e dor são inseparáveis, estejam no campo espiritual ou no carnal, não se pode ter um sem o outro. Os contornos de Eros e Ágape perdem definição.

Em escultura encomendada pela Igreja, Gian Lorenzo Bernini demonstra um trabalho muito mais interessado no gozo que na agonia, de modo que, em Santa Maria della Vittoria (Roma, Itália) jaz uma Teresa de ares barrocos, coberta por inúmeras dobras de mármore tecido, à mostra somente pés, mãos e rosto — um rosto entorpecido, de lábios semiabertos, como num arfar ou gemido, e olhos semicerrados, como se simulassem um orgasmo.


II

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes o cotidiano era um pensar nas alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada (Hilst, 2004, p. 17).

Há cinco séculos dos escritos autobiográficos de Teresa d’Ávila, são inúmeras as poetas que trabalham no limiar entre êxtase religioso e gozo carnal, por vezes unificando-os, noutras contrapondo-os — caso específico para o qual tomo de exemplo o texto de abertura de Do desejo (1992), de Hilda Hilst (1930-2004), poeta campinense. Há insatisfação contendente com “Aquele Outro”, grafado assim, em iniciais maiúsculas, saturado pelo emprego do adjetivo decantado, que demarca a um só tempo sujeito de ovações e ideia de apartação, de separação factual entre a existência terrena e o Ser adorado. Ser esse que não corresponde às demandas físicas, ao fogo urgente e pulsante na voz do poema, reclamante da ausência de viscosidade e de contato, na mesma latência que move a noiva no texto do Cântico dos Cânticos.

A atmosfera de tensão posta do segundo ao quinto verso do poema de Hilst chega ao ápice quando essa voz demarca ter ao seu alcance, ao alcance do desejo, um corpo outro, físico, e que confere objetividade onde antes havia apenas O Nada. Se há desejo e tudo é cintilância, se denuncia o cansaço da contemplação pela contemplação, da inutilidade do desejo sublimado, encrustado de pepitas e diamantes, esmeraldas e pedras preciosas de toda a sorte — deslumbrantes para serem admiradas, distantes demais para serem tocadas, roladas de um lado a outro no interior da boca, engolidas, empregadas como adorno nos orifícios do corpo. E se há desejo material, há ainda insatisfação com o Verbo que não se faz carne no poema, posta a urgência dessa carne e de seus ossos, do conforto do corpo morno ao lado no pós-sexo depois de um dia de cão. Qualquer que tenha sido o objeto de desejo em outro momento, nunca conferiu segurança ou gozo.

O poema finaliza com o uso do verbo foder, reforçando a “descida” do sujeito do plano metafísico/espiritual para o concreto. E o emprego da primeira pessoa marca a natureza de levante do texto, deslocando a voz do campo da adoração, abrindo fresta que o permite completar a travessia da infinda espera pelo intangível gozo para a condição de sujeito da própria satisfação.

Pode-se dizer que atua a recuperação da capacidade de ver além por parte da voz poética, testemunhando a necessidade de suspender os tempos sombrios que ofuscam o futuro, inviabilizam a possibilidade de desejar, de querer, sempre em busca da “[...] sobrevivência do desejo nesse espaço concebido para neutralizá-lo” (Didi-Huberman, 2017, p. 13-22). Isso deriva de um olhar para o passado que não se volta à celebração, mas ao ato de gerar forças na intenção de que não se repita. O texto hilstiano é um claro exemplo, posta a insatisfação impulsionadora da voz numa busca por ser sujeita do próprio prazer enquanto redescoberta dos usos do passado. Jeanne Marie Gagnebin (2006), recorrendo a Theodor W. Adorno, enfatiza a importância do recurso ao passado como meio de esclarecimento para evitar a repetição e, portanto, gerir a permanência da mudança, a resistência ao horror, ainda que através de formas simbólicas de rebelião — todo poema é um objeto de fazer ver.

EUCARISTIA

Amo teu corpo,
Tua pele,
Teus músculos
Feitos de nervos,
Sangue,
Espasmos.

Amo tua alma,
Sinto-a na tua voz,
Nas tuas palavras
Que bebo,
Como se fossem mel,
No teu sopro quente,
Vapor em meu pescoço.

Amo tua alma
Como se fosse revestida de pele
E de músculos.

Amo teu corpo,
Como se fosse um sopro,
Uma voz.
Amo tua alma,
Como se ela tivesse nervos
E se retesasse.

Amo teu corpo
Como se ele fosse um vapor etéreo,
Intocável.

Amo teu corpo
E tua alma
Com tal intensidade
Que te reconheço
Em qualquer espasmo,
Mel em meu pescoço.

Amo tua alma
E teu corpo
Com tal vivacidade
Que não desejo posse,
Mas suave entrega.

Teu corpo:
Eu o penso;
Tua alma:
Eu a vejo,
És sujeito
E objeto
Do meu amor.

Eu te comungo (Naveira, 1995, p. 60-61).

Na contramão, recorro agora a um trecho de Eucaristia, de Raquel Naveira (1957), poeta campo-grandense. Já nos primeiros versos, o objeto poético denota o erotismo em sua incursão tátil: vem primeiro o amor físico — o amor pela pele, pelos músculos e nervos, sangue e espasmos —, para só depois seguir-se à descrição do amor à alma e, portanto, uma inversão de prioridades e importâncias. Em si fractal, o texto se desenvolve enquanto costura da relação sexual ao rito que lhe empresta o título, intercalando estrofes que dedicam amor ao corpo, à alma e ao corpo novamente, até o clímax transparente na comunhão entre os amantes, entre o espiritual e o físico. “Eu te comungo” (Naveira, 1995), relata a voz poética que recebe direto da fonte (de seu objeto de desejo) o sacramento — o corpo e a alma, o corpo e o sangue de Cristo.

Desse poema gostaria de ressaltar ainda os versos “Amo tua alma / como se ela fosse revestida de pele / E de músculos” e “no teu sopro quente / vapor no meu pescoço” (versos 7-9, 12 e 13), que remetem, respectivamente, à presença do falo como possível canalizador da alma do corpo que é amado no texto e ao gesto erótico, direcionando a leitura para a percepção da sobreposição das presenças no poema emulando uma transa.

***


MAR I

Para ti queria estar
sempre vestida de branco
como convém a deuses
tendo na boca o esperma
de tua brava espuma.
Violenta ou lentamente o mar
no seu vai-e-vem pulsante
ordena vagas me lamberem as coxas,
seu arremesso me cravando
uma adaga roxa (Savary, 1998, p. 176).

Em Mar I, a poeta paraense Olga Savary (1933-2020) também reelabora o desejo físico e, embora a voz no texto aparente inclinação à tradição politeísta (uma inferência, dado o recurso ao uso de deuses, no plural e em minúsculas), é possível resgatar elementos que a situam no limiar entre o puro, sob conotação religiosa, e o desejo de possessão, expresso nos versos “sempre vestida de branco / como convém a deuses” (versos 2 e 3). O desejo de ter a boca preenchida de esperma contrasta a imagem da mulher pura, vestida de branco, ao mesmo tempo ofertório e sacrifício ao Mar. Em alguns momentos da produção savaryana o Mar nomeia a personagem do homem forte, viril, e ocupa o espaço de domador, especialmente nos textos em Magma (1977-1982), onde, com frequência, a autora recorre a figuras de linguagem que transmutam a perspectiva da voz poética na de animais sendo ou a serem domados. Em Mar II lê-se: “Mar é o nome do meu macho, / meu cavalo e cavaleiro / que arremete, força, chicoteia / a fêmea que ele chama de rainha, / areia.”

O “vai-e-vem pulsante” (verso 7) mimetiza o movimento do objeto de desejo cobrindo o corpo da voz narrativa no coito, enquanto “seu arremesso me cravando / uma adaga roxa” (versos 9 e 10) aludem à penetração, trazendo a memória do dardo de ouro que transpassou o coração de Santa Teresa, desta vez moldado em punhal roxo. Roxo como a língua cansada após beijos e exercícios outros, roxo como a terminação do pênis também no exercício de seu trabalho, a glande no alcantil da concentração sanguínea.

ECLESIASTES

«Seulete Suy et seulete vueil estre,
Seulete m'a mon doulx ami laissiee.»
CHRISTINE DE PISAN

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
ou vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi (Lopes, 2009, p. 196).

Por fim, o Eclesiastes, da portuguesa Adília Lopes (1960), em diálogo direto com o capítulo 3, versículos 1-8 do livro homônimo na Bíblia. Enquanto no escrito do Antigo Testamento segue vasta lista de ensinamentos sobre administração dos tempos nas mais diversas áreas da vida, Lopes se apropria da estrutura para estabelecer lista breve sobre a gestão de um tempo muito mais específico: o de foder. O movimento desse texto guarda nexos explícitos com a recuperação de relações, sejam espirituais e/ou corpóreas, obviamente, mas sintetiza com maior visibilidade o que tentei descrever ao longo de minhas palavras: a torção do cânone cristão — seja ele entendido em seus princípios metafísicos/filosóficos, iconolátricos, ritualísticos ou místicos.

Na contramão dos textos anteriores, o de Lopes se ancora de modo muito característico na apropriação da linguagem das Escrituras para sangrar o cânone, reconhecendo e recusando a um só gesto a fundamentação cristã de padrões de comportamento impostos às mulheres. Estando ainda em diálogo com o trabalho de Hilda Hilst anteriormente apresentado, quando rechaça, em alguma medida, esses lugares e tempos comuns. No Eclesiastes de Adília, o ensinamento é sobre colocar-se à frente com o verbo foder, conferindo centralidade ao sexo, em sua constância ou ausência (a entrega das contas ao final é o momento de fechamento dessa ideia), como medida de tempo.

Há, na maioria dos textos analisados, uma aproximação da vida enquanto movimento de expansão, ato que implica necessariamente subverter ao invés de conformar. Desde aqueles textos de cerne cristão, como os diários de Santa Teresa d’Ávila, observamos pequenos levantes, pois, ainda que se utilizem de meios cooptados pelas estruturas de poder (a linguagem) ou dela façam parte em alguma medida (gostaria de recordar que Santa Teresa d’Ávila escreveu o texto analisado em total entrega à sua missão de servir a Deus), também as desfiam na tessitura poética. Nem sempre os deslocamentos serão feitos de forma consciente, mas há uma latência interior que — como no êxtase de Teresa, no revide de Hilda, na comunhão de Raquel, na entrega de Savary e nos tempos de Lopes — causa pequenas explosões, pequenos levantes que podem até ser individuais, mas perenes da política para além do sujeito que os move.

Referências

BÍBLIA Sagrada: nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 762-763.

CRUZ, São João da. Obras de São João da Cruz. Tradução das Carmelitas descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1960. v. 2, p. 131.

D’ÁVILA, Santa Teresa. Livro da vida. Tradução de Marcelo Musa Cavallari. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. cap. 23, parte 13, p. 267-268.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Introdução. In: DIDI-HUBERMAN, Georges (org.). Levantes. Tradução de Edgard de Assis Carvalho, Eric R. R. Heneault, Jorge Bastos & Mariza Perassi Bosco. São Paulo: Edições Sesc, 2017. p. 13-22, 16.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O que significa elaborar o passado? In: GAGNEBIN, Jeanne Maria. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006. p. 97-105.

HILST, Hilda. I. In: HILST, Hilda. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004. p. 17.

LOPES, Adília. Eclesiastes. In: LOPES, Adília. Dobra: poesia reunida 1983-2007. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 196.

NAVEIRA, Raquel. Eucaristia. In: NAVEIRA, Raquel. Abadia. Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 60-61.

SAVARY, Olga. Mar I. In: SAVARY, Olga. Repertório selvagem: obra reunida – 12 livros de poesia (1947-1998). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1998. p. 176.

domingo, agosto 03, 2025

Stripper em silêncio

[Contém spoilers de "Showgirls" (1995), "Striptease" (1996), "Suspiria" (2018), "A substância" (2024) e infomerciais Polishop]


Demi Moore em Striptease (1996).
Fotografia: Kerry Hayes. © 1996 Castle Rock Entertainment (reprodução)










O cinema dos anos 1990 bombardeou a audiência madura com comédias, dramas e thrillers eróticos de baixo rendimento que, se à época foram criticados pelo desenvolvimento de suas personagens, atualmente detêm o status de obras cult. Showgirls (MGM, 1995) e Striptease (Columbia Pictures, 1996) são exemplos expressivos ― ambos os roteiros costuram problemas familiares e financeiros às aspirações profissionais das protagonistas, Nomi Malone (Elizabeth Berkley) e Erin Grant (Demi Moore), respectivamente, fortemente amparados na fetichização do consumo da imagem feminina.

Na década de 2000, o público secundário dessas películas herdou certa familiarização com lap dance, pole dance e stripping, temas particularmente interessantes para adolescentes gays afeminados e retraídos em processo de autodescoberta. Não pude localizar a data de estreia de Showgirls no Brasil, mas Striptease foi exibido pela primeira vez na TV aberta em 2 de maio de 2000, sob exclusividade do SBT, no longevo Cine espetacular. A nudez de Demi Moore garantiu ao canal de Silvio Santos 38 pontos de audiência em horário nobre, superando atrações nacionais e já consolidadas no monopólio Global. Com efeito, não foi a massa de gays afeminados curiosos o grupo responsável pelo registro do recorde.

Naquela época, apesar de ainda não saber muito sobre mim, entendia meu interesse por esses filmes na contramão dos que buscavam na nudez de uma das atrizes mais esnobadas pela alta cúpula da crítica misógina de cinema algum alívio sexual. Estava na mesma atmosfera de captura encabeçada por Moore, impactando colegas de elenco, figurantes e público real, mas pela via do desejo de também exercer aquela hipnose gestual da dançarina exótica.

Demi Moore, em Showgirls (1995), com o clássico biquíni de paetês.
© 1996 Castle Rock Entertainment (reprodução)

Levou anos, mas a censura caiu e eu finalmente pude assistir a íntegra do biquíni de paetês dourados de Albert Wolsky explodindo da camisa branca de Grant. Mágica até então apenas vislumbrada nas chamadas da TV aberta ― estratégia de marketing diabólica para inculcar a cena no imaginário de diversos pré-adolescentes. Hoje o filme possui indicação A16 no Prime Video, enquanto Showgirls recebe um A18, selos, de acordo com a Classind do Ministério da Justiça e Segurança Pública (2021), analisados através dos critérios “sexo e nudez”.

Movimentos sensuais e coreografados, pouquíssima ou quase nenhuma roupa (quando as showgirls exibem a pele sob os figurinos de Ellen Mirojnick, carregados de fúscia, lilás, dourado, robes com penas de avestruz, lantejoulas, cristais, amarrações, animal print, muita transparência e Versace) atiçam a atenção masculina. Mas ao subir nos palcos, tanto Nomi quanto Erin se tornam entidades, totens quando o arco das costas ou o interior das coxas friccionam a barra, o chão, as cadeiras e outros meios de extensão do corpo na dança e no pleasing. O fetiche do controle se revela aqui, pois o feminino oferece apenas o necessário à gestão dos próprios interesses, a excitação e a imaginação masculina são, no máximo, consequências, nunca finalidades.

Elizabeth Barkley em Showgirls (1995)
Fotografia: Mary Ellen Mark. © 1995 United Artists Pictures Inc. (reprodução)

De um ponto de vista feminino, são a segurança e o controle do corpo na direção dos próprios desejos (seja a obtenção de condições financeiras para retomar a guarda da filha, no caso de Striptease, ou tornar-se a persona envolta em glamour da dançarina de Las Vegas, como em Showgirl) que exercem o verdadeiro poder. O mover da barra dos limites do saudável na imaginação masculina para o doentio é saldo histórico de dominação sem justificativa plausível e na qual o homem jamais poderia se ver sem as rédeas do próprio desejo, ao custo de ter subjugados os do Outro. Tanto que os diretores tentam replicar esse movimento para satisfazer o público prioritariamente masculino, sem reconhecer a autodeterminação da potência feminina.

Então, enquanto homens gays afeminados em processo de autodescoberta, como aquela massa dos anos 2000, poderíamos recusar a ânsia de despir o corpo como forma de produzir arte e, sem hipocrisia, negar a consequência de nos sentirmos desejados, reforçando e reconhecendo a força dessa inversão também presente no feminino já pulsante em nós? Como negar o potencial do erótico na dança que inocula o corpo de segurança para se perceber como espaço de transformação e regulação da autoestima?

Em meio a tantas outras artes, a dança tem valor afetivo muito especial e sempre presente na minha vida ― muitas vezes “no escuro”, dentro do banheiro ou atrás da Kombi de meu avô no quintal de casa , lugares onde ninguém poderia me ver rebolar ―, porque minha avó, mesmo diante dos julgamentos e dos punhos das outras crianças da rua contra o meu estômago, entendeu junto de mim o seu significado. E, mesmo com todos esses medos, me ofereceu e bancou a matrícula no meu primeiro curso.

Permaneci dançando após a sua morte ― as quadras e salas de escolas dando lugar aos estúdios profissionais, com aparato diferencial e adequado ao nível de complexidade de danças mais exigentes, verdadeiros espaços de análise. Você já experimentou estar numa sala revestida de espelhos fazendo um solo sob orientações precisas e sérias? É como estar nu e observar cada detalhe, cada dobra de pele flácida pós-emagrecimento, até as feridas mais recônditas, dores-movimento executadas quase como numa reelaboração dos traumas (pense a sequência de dança em que Susie Bannion (Dakota Fanning) executa Olga (Elena Fokina) no remake de Suspiria (K Period Media/Amazon Studios, 2018), de Luca Guadagnino).

Com o tempo, a vida me distanciou desses espaços. Deixei de frequentar as aulas, engavetei minhas joelheiras, os shorts de cintura alta, os meiões, as calças de lycra, os croppeds... A gestão do desejo de dançar ficou restrita às preliminares entre quatro paredes até muito recentemente, quando passei a dançar sem companhia, improvisando na sala de casa, e a filmar os processos. Tenho essa lista de “músicas para performar” em crescendo ― ora regada por batidas lentas, ora por guitarras ―, sem deixar de lado os vocais soprados, os falsetes, os sussurros e suspiros, os gemidos roucos e plenos de erotismo, condutores das mãos e dos dedos no redesenho do corpo.

Autorretrato pós-dança (março de 2025)

Ainda danço, mas de volta ao escuro... E, quando o faço deslizando pelo chão e levantando os quadris antes do resto do corpo ou deixando à mostra a musculatura entre as pernas, me canso. Mas canso como nunca. Em parte por desânimo com as limitações decorrentes da fragilidade do meu corpo em processo de adoecimento. De todo modo, me esforço para resgatar o pouco de showgirl, de stripper em silêncio que me habita: esses dias fiz alguns improvisos ao som de Dirrty Diana (Epic, 1987), do Michael Jackson. 30 minutos foram suficientes para me fazer passar o resto do dia com dores, mal-estar e até me renderam uma visita à emergência, bem como algumas horas de lágrimas pela clara incompatibilidade entre a latência, a vontade de sentir o poder de/sobre meu corpo, suas conexões com desejos e ressignificações, e a falta de vitalidade imposta. 

E isso nos leva de volta ao cinema, agora pelo viés do culto à beleza, à saúde e à juventude (assim mesmo, em conjunto), gerando o reencontro com Demi Moore, cansada e vivendo Elizabeth Sparkle, em enredo altamente metalinguístico por tê-la como uma das atrizes principais, a outra sendo Margaret Qualley, sua contraparte em A substância (MUBI & Working Title, 2024), da francesa Corale Fargeat. Em relação simbiótica, elas se complementam na mesma medida em que isso implica o processo contínuo de autoanulação, culminando na decadência física de ambas. 

Demi Moore e Margaret Qualley em A substância (2024).
© 2024 MUBI & Working Title (reprodução)

A aeróbica, alvo da dedicação da vida da(s) protagonista(s), é carregada de apelo sexual e remete aos home videos famosíssimos nos EUA de 1980 e 1990, um mercado fitness encabeçado por Jane Fonda, Rachel Welch e Cathy Lee Crosby, para citar algumas. Na música, tivemos Olivia Newton-John e seus dançarinos suados em collants de lycra e sungas microscópicas no vídeo de Physical
(Geffen, 1981), algo reavivado por Madonna com o vídeo de Hung Up (Warner Bros., 2005).

(Adendo: o Brasil não ficou de fora da fitness mania, basta lembrar de Solange Frazão e Nana Gouveia, percursoras do abdome feminino trincado na TV. Os menos dados ao exercício físico assistiam a esses programas coçando o saco, comendo Cheetos, lambendo os dedos, e engordurando os botões de suas cintas tonificadoras Polishop, que prometiam resultados milagrosos por meio de um sistema de vibração — o mundo sempre nutrindo as necessidades masculinas com toda a satisfação possível).

E como a vida imita a arte, Fargeat, autora de crítica sagaz e inteligente a todas as problematizações acerca do feminino levantadas neste texto (não pense a leitora ou o leitor que elas estão distantes de nós só porque não explodimos em pedaços no terceiro ato), perdeu o Oscar de melhor direção para Sean Baker, de Anora (Neon, 2024) ― outro filme explorando a imagem da stripper subjugada por problemas mediados por presenças masculinas. Anora é mais um exemplo vazio de significado e apoiado no sexploitation da personagem feminina de autonomia cerceada desde as decisões mais primárias da direção.

Por que seguimos dançando no escuro, em silêncio e vestidos do pescoço aos pés, se o que dançamos são nossos direitos e o prazer do pleno exercício de ser quem somos e não o que esperam de nós?

terça-feira, julho 01, 2025

Não tinha uma pedra no meio do caminho


A sala de espera materializa o limbo. De olhos fechados, me vejo só no escuro e, diante das últimas experiências, isso não está entre as sensações seguras. Digito para Marluce: “Tô na fila do ultrassom. Tô com tanto medo de que acabe aparecendo alguma coisa...”.

Não é a primeira vez. Há alguns anos, uma dor aguda na lateral do tronco me colocou na mesa de outra clínica, sob a mão pesada do médico conduzindo o aparelho de um rim a outro e descendo até a bexiga. Tortuoso pela pressão, incômodo pela exposição do corpo a um completo desconhecido, não pelo diagnóstico. No geral, pedras não me assustam. Penso na beleza da malaquita, no manuseio e no acionar dos sentidos que canonizam: isto é pedra, existe, tem forma. E a imagem do cálculo de 5mm no rim esquerdo veio acompanhada do alerta de eventual expulsão.

Mas hoje não há objetividade ou espaço para metáforas, como não há nada incomum no meu sangue ― garantem as inúmeras repetições dos exames de rotina, os testes de HIV, sífilis e hepatites B e C nos últimos 7 meses. E se não há pedra no meio do caminho, só dor excruciante sem causa aparente, você teme hipóteses. Deixei de contar as entradas na emergência, os acessos, as bolsas de soro, as seringas acompanhadas de curativos redondos com estampa de palhaços (sempre causando alergia), as injeções, as reações ao Tramadol e, no fim, o retorno ao consultório apenas para pegar a receita de analgésicos e antiespasmódicos que nem exigem receita.

Marluce responde, a notificação me transporta para a sala de espera. Ouço reclamações sobre a demora do médico e o sistema de chamadas, pessoas insatisfeitas com o fato de a clínica priorizar os atendimentos particulares: “Eu não tenho mais condições de pagar plano de saúde. Tava pagando R$ 1.600 e cancelei. Tô aqui desde 7h da manhã, com fome, cansada... Quem depende do SUS só se lasca!” A paciência costuma ajudar em longas esperas, mas a tensão aumentada é um gatilho e, na dúvida entre buscar silêncio e colocar ansiolítico sob a língua, me levanto para ir ao banheiro.

Os banheiros ficam ao final do corredor, ao atravessá-lo percebo outra fila para o exame. As pessoas são chamadas em grupos de 8 e ficam nesse espaço, bebendo água e aguardando a auxiliar do médico dizer seus nomes. Encontro os banheiros à esquerda, dividindo espaço com o quartinho de vassouras e o depósito de descartes contaminados, à direita. Recordo imediatamente das avaliações sobre a clínica na internet, um comentário a comparava com clínicas clandestinas ― claro exagero de alguém que nunca precisou segurar a mão de uma amiga em ambiente insalubre durante um aborto ―, outros criticavam o estado dos banheiros, comprovadamente alagados e sem qualquer preocupação dos usuários em mantê-los limpos (o recepcionista precisou deixar seu posto 3 ou 4 vezes para enxugar o chão).

“Muito solícito”, o atendente aponta e legenda o banheiro masculino para mim. Ele sentiu essa necessidade por me ver de corpo inteiro ― skinny, baby tee e tênis ―, sem a parede da recepção entre nós? Dou de ombros, entro no banheiro sinalizado MASCULINO, fecho o vaso, cubro a tampa com papel, sento e me ponho a fazer esse exercício de respiração calculando o tempo para não demorar. Um dos maiores incômodos durante crises de ansiedade é ter seu silêncio interrompido, batidas apressadas na porta não ajudariam.

Mínimo controle, retorno à sala de espera, de onde talvez nunca tenha saído, e aos poucos aquela maré de gente dá lugar ao vazio.

Vazio. Tela branca (ou azul). O que há de errado? Nuvens escuras se acumulam nas copas das árvores através da janela. Mau presságio?

O som do meu nome interrompe os pensamentos, me levanto prontamente ― o recepcionista oferece um copo descartável, encho d’água e bebo por 4 vezes seguidas ― e caminho até o outro espaço. O ar-condicionado é impiedoso, lamento meu casaco pendurado numa cadeira em casa; lamento mais ainda a expectativa do gel frio no meu abdome sensível pela depilação e já arrepiado pela temperatura.

Os desvios involuntários de atenção me protegem do desconhecido, mas, como em autossabotagem, pesquiso no celular quais condições o exame pode detectar. Leio depressa e me arrependo na mesma velocidade. Apesar de ter passado a vida lidando com a finitude, com o esvair da saúde e da autonomia de pessoas amadas (minha avó, minha mãe), a possibilidade de encarar a outra face da moeda é aterradora. E se sair daqui com um diagnóstico negativo?

Me chamam novamente e, ao entrar na sala, encontro o médico sozinho. Muito gentil, me pede para subir a camisa e desabotoar a calça, insere toalhas de papel entre o cós e a minha pele. Enquanto calça luvas, ele pergunta o que me levou a fazer o exame, a gastro pediu, passo a falar em desatino das dores e de como às vezes até me impedem de andar, das entradas na emergência, da dificuldade para me alimentar, dos inúmeros medicamentos, do medo. Ele aplica gel com a almotolia ― o barulho de ketchup saindo da embalagem é engraçado, mas não impede o arrepio que me desce pela espinha ― e espalha por toda a extensão do meu abdome. Questiona se perdi peso: 12kg em 6 meses.

O silêncio mais absurdo e constrangedor corta a sala durante a eternidade.

“Não tem nada fora do normal, Hyago. Está tudo bem no seu exame. Pode levantar e passar na recepção pra pegar a guia do resultado.”

Eu removo as toalhas de papel da calça e tento limpar o gel grudento na minha barriga, peço mais algumas antes de ir embora, sinto a frustração encher os olhos. Agradeço e desejo bom trabalho.

Em looping, de volta à espera, pondero sobre ligar para a minha analista e marcar uma sessão extra, aliviado por não receber diagnóstico negativo, aflito por não receber qualquer diagnóstico.

Há outros exames por fazer, mais invasivos. Até lá, o medo segue informe, abstrato. E me faz uma tela branca (ou azul) ociosa, ansiosa como se no centro de um círculo de pessoas com pedras em suas mãos.

quarta-feira, maio 21, 2025

antônimos (videopoema)

Produzi antônimos como uma das atividades do componente eletivo "Experimentações poéticas do sensível", ministrado pelo professor e amigo antonio carlos sobrinho (a quem entrevistei aqui), no semestre 2024.1 da Licenciatura em Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Sob ritmo intenso, a cada aula éramos incitados a elaborar objetos poéticos a partir de propostas criativas e desafiadoras. Os resultados eram socializados e posteriormente discutidos.

Como sugere o título experimentações, a ideia era a de que saíssemos da zona de conforto e experimentássemos outros tipos de suporte, aproveitamento dos espaços, estratégias narrativas e técnicas de escrita. A oportunidade me inspirou a ampliar os processos criativos unindo artes que comumente produzo de forma isolada, como o poema e o bordado, e a explorar o audiovisual e o canto, com os quais tinha pouca ou nenhuma experiência.

O vídeopoema foi concebido a partir das leituras sugeridas, das discussões levantadas em sala de aula, das contribuições de colegas de turma e do meu próprio universo poético. Ao final, ele foi selecionado, junto a outros dois poemas de minha autoria, para compor a coletânea Experimentações poéticas do sensível: livro de artista, organizada pelo antonio, com 45 textos de 30 discentes. A publicação pode ser acessada, baixada e/ou lida na íntegra no blog da eletiva. Lá também estão registrados um panorama geral da proposta e relatos de algumas pessoas sobre como foi a experiência na disciplina.

Deixo aqui o videopoema seguido do texto.



Adélia lê sob a bananeira: “Roxo aperta. / Roxo é travoso e estreito. / Roxo é cordis, vexatório.” e roxa é a glande cansada do homem à esquerda, pulsando a 120 cavalos. por que a tarefa de amá-lo? pergunto ensimesmado, sei que de ti nada além silêncio. por que tão difícil? por que dar corpo a austera missão? por que me leva sonho, arte, e mesmo as dores já não são minhas? por que as únicas mulheres passíveis de amor sejam três, uma delas fardo e frágil? para que tanto ressentimento? por que me ilibam essência amadeirada e loção pós-barba em pleno meio-dia no 113 lotado? por que este homem abre seus poros, ejacula 3 vezes seguidas dentro de mim, deita e dorme de costas, e eu cartografo infiltrações no teto e alergias com pouquíssimo conhecimento geográfico? ou como o aquarista mede níveis nas laterais, deslizando dedos massudos sobre vidro temperado? à noite minha boca arde quando penso os calos nas mãos dele, ríspidos, como me disse de sua língua, e, zelosa, desejo arrancar a pele grossa com os dentes. sanar febre sárdio, jaspe e papoula semiaberta. o mundo silenciou desde o “faça-se a luz!”, pois antes veio o homem neste jogo estátua de sal, mas é igualmente verdade o quanto mudou: há objetos interessantíssimos, aparelhos depilatórios cor-de-rosa — “Venus”, que certamente se via às voltas com pelos nas pernas —; tampões o.b., para estancar sangramento nasal. mas ainda são homens os que, sequer meu nome ou a textura do vão entre minhas coxas em suas bocas, especulam desejo e momento exatos para me pendurar em lustres — há estrelas demais neste céu diminuto; são homens os que nomeiam sentimento, os que me chamam louca, os que me tiram a roupa desde pequeno, por vezes contra vontade, e todos os dias desde então. “faça-se a luz!” e por que deveria? mal me esperam deitar para pôr em uso o imperativo. por que me fez presa à tua imagem e semelhança sem saber se o queria? mártir e santa em gozo místico — por isso me prostra diante homens de vocabulário enfadonho, tão repetitivo? por que insuportável a dor da tua presença e, apesar disso, estas palavras se moldam para comportá-la?

— Hyago Marques