quinta-feira, novembro 07, 2024

Exame admissional

"AO CHEGAR 
RETIRE SUA SENHA
NO GUICHÊ 1 
E AGUARDE ATENDIMENTO."

— Bom dia. Qual o nome da empresa? 
— Segue o corredor, primeira sala à esquerda, n. 1. 

 Peguei a senha P-14, sem a menor ideia do significado da classificação. 

 — Agora é só voltar para a sala anterior e aguardar chamarem sua senha. 

Volto ao manancial de expressões de ansiedade, cansaço e preocupações. Uma parte deles olha fixamente para a TV slim 42″ que exibe entrevista com o rodapé “Liberdade religiosa”, anunciando a chegada de uma caravana de serviços à população em Joaquim Gomes. Ao lado, a segunda TV slim 42″ anuncia senhas e guichês, com alerta sonoro que impede o foco em coisa outra — no meu caso, na leitura de Uma vida pequena, de Hanya Yanagihara —, enquanto os demais mantêm um olho nela e outro na tela do smartphone.

Extremamente incomodado pela ideia de realizar um exame admissional, já saí de casa cedo, pois informaram que o atendimento seria por ordem de chegada. Para minha surpresa, 17 minutos após a abertura da clínica a recepção já estava lotada. 

Me sinto cada vez menor na cadeira. Detesto ambientes hospitalares e/ou laboratoriais e toda a burocracia administrativa que antecede os procedimentos médicos — é como caminhar com a cruz até o calvário. De onde estou, ouço atendentes fazendo a entrevista inicial: “é hipertenso, diabético, tem alguma doença cardíaca? Você fuma ou bebe? Sua altura? Seu peso? Faz atividades físicas? Qual o seu estado civil (para quê isso interessa)? Seu telefone? Seus pais têm histórico de hipertensão e/ou diabetes? Já fez alguma cirurgia? A vacina da Covid, já tomou? Quantas doses?” Algumas atendentes baixam o tom da voz, curiosa e principalmente diante dos que pleiteiam vagas para auxiliar de obra — um pré-teste da saúde auditiva para ter ideia do nível de dano gerado pelos anos de exposição à ferramentas e processos ensurdecedores? Esse também é o momento em que a pressão é aferida, com aparelho digital a pilhas. 

 — Pronto, só é aguardar, viu? 

 Senha: P11. Guichê: 2. 

 O livro da Hanya, que até então me acompanhara nos ônibus para a Universidade, com frequência me acompanha nas entradas na emergência, principalmente nas inúmeras durante as duas últimas semanas, mais como âncora na realidade do que leitura de entretenimento, pois perdi a habilidade da atenção nessas situações. 

Os acessos deixam meu braço em posição incômoda, doem e me impedem de segurar o calhamaço com algum conforto. As técnicas de Enfermagem, os maqueiros, as funcionárias da limpeza — com carrinhos cujas rodinhas simulam os gritos de várias crianças em uníssono — caminham em todas as direções.

Senha: P13. Guichê: 1.

(Preciso ficar atento à bolsa de soro, o sangue voltando pelo acesso ao final da solução é um trauma do pós-morte de minha avó. Observei as outras pessoas até aprender a fechar a passagem sempre que as enfermeiras parecem ocupadas demais para isso. Sei que não é proposital, certamente eu mesmo não daria conta de todas as medicações, do acompanhamento dos retornos de exame, das liberações e dos pacientes que se negam tomar a medicação e esperam ficar bem apenas sentando na poltrona. Alguns reclamam da demora da liberação dos remédios pela farmácia, outros da falta de resposta ao apertarem a campainha da sala do eletro.) 

Às vezes fico encarando a capa do livro: essa descrição de orgasmo masculino que mais se aproxima de carranca de dor parece, agora mais que nunca, bastante apropriada. 

Senha: N36. Guichê: 4.

Pequenos grupos são orientados na direção do laboratório, que parece ficar em outro prédio, para realização das coletas. Excelente, tirar mais sangue: fiz três hemogramas em menos de uma semana, além do sorológico negativo (me senti pessoalmente ofendido, mas não muito, quando o médico insistiu sobre a janela de manifestação, mesmo após ter informado que meu último exame de HIV/Aids, sífilis e hepatite era de menos de 1 ano e que há 3 não me relaciono com outro homem).

Senha: P14. Guichê: 1.

Gesticulo com a senha para a atendente do Guichê 3, pois o atendente do Guichê 1 está com o P13, cuja chamada devo ter perdido, não por falta de interesse na contagem, mas por cansaço. Ela me pede para entregar a ele meus documentos, o faço prontamente; ele me pede para aguardar ser chamado e entra com minha identidade para os recônditos do corredor à esquerda.

Senha: N55. Guichê: 3.

De repente a sala se enche com o retorno do pessoal do laboratório. Só homens, por sinal, e numa profusão de perfumes tão diferentes uns dos outros e tão fortes que é como se a cada entrada uma grande luva de boxe ganhasse forma no ar e me acertasse o estômago, fico imediatamente enjoado.

O atendente do Guichê 1, muito jovem e atraente, chama o meu nome. Ele me desconserta, gaguejo (não tinha dado tanto atenção ao fato de que gaguejo, ao menos não até um rapaz pelo qual me interessei recentemente ter me alertado) nervoso.

Passo pela mesma sabatina, tenho minha pressão infantil aferida (11x8), assino papéis, registro a digital do polegar direito em aparelhinho e, por um instante, sinto que estou na biblioteca da UFAL dando andamento ao empréstimo de algum livro de poemas. O atendente do Guichê 1, muito jovem e atraente, faz seu trabalho enquanto beberica café preto em copo descartável — ele dá um gole e me libera para a segunda recepção, onde as pessoas passam a ter nomes, deixando de lado as sequências aleatórias de letra e números. 

Duas TVs led 21″ na parede: uma exibe os nomes, acompanhada da voz da atendente de uniforme cinza e prancheta na mão, que literalmente grita os nomes — tenho a impressão de que deseja alcançar os transeuntes; na outra, um Rodrigo Bocardi sereno e de terno cinza noticia o incêndio de um complexo de lojas populares, no Rio de Janeiro, imagino, com imagens aéreas em tempo real. Bombeiros apontam mangueiras de pressão para tentar conter o fogo. Do nada, um enfermeiro surge à minha direita, de jaleco bordado, e também passa a gritar nomes. 

Em meio a todo o burburinho de conversas, é impossível me concentrar em qualquer coisa e a campainha de chamada toca com frequência insana. Parece linha de montagem.

Placas suspensas indicam as direções das salas: 2 a 5, 2. Consultório médico; 3. consultório médico; 4. raio X; 5. Consultório médico; salas 6 a 9: 6. Consultório médico; 7. Eletrocardiograma, eletroencefalograma, espirometria (preciso lembrar de pesquisar o que é isso), acuidade visual; 8. Consultório médico; 9. Audiometria.

Uma moça ao meu lado comenta com a que está atrás de mim que há apenas um médico atendendo. 

Ótimo. Vou perder a última aula de literatura.

Da infimidade de minha mecha loura, tentativa de parecer a Vampira dos X-men, odeio profundamente o enfermeiro à direita e seus cabelos platinados, que, quando parado, mantêm intacto um topete muito bem modelado, mas que se move no alto da cabeça dele feito bailarina quando o movimento gera brisa.

8h59, sala 5. De fato, apenas um médico atendia (i.e.: dava bom dia, sem olhar, carimbava sua ficha, devolvia e desejava bom trabalho), mas 4 TVs trabalhavam intensamente.

Passo no último guichê para retirar os documentos, a atendente não retribui meu “bom dia”. Contudo, o papel diz que estou apto para trabalhar numa vaga que não exige diagnóstico para confirmar que eu realmente não estou: basta olhar para mim, corpo franzino, perda de peso contínua, mal tenho me segurado em pé.

***

4 dias e uma lesão na lombar depois, eu apenas confirmaria que não estava apto para nada daquilo.

sábado, julho 06, 2024

Entrevista: Antonio Carlos Sobrinho fala sobre "quase um manifesto", seu segundo livro de poemas

Foto: acervo pessoal.

Retomo a série de entrevistas com escritores trazendo um querido amigo-poeta! 

Antonio Carlos Sobrinho é licenciado em Letras - Português e Inglês, mestre em Estudos da Linguagem (Uneb) e doutor em Literatura e Cultura (UFBA). Foi selecionado como escritor participante do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe) da Casa das Rosas/SP em 2023. É o idealizador de Luminescências - Revista de literatura e outras artes, periódico vinculado à Faculdade de Letras da Ufal (e que tenho o prazer de editar junto a ele), instituição onde atua como professor substituto. Desenvolve pesquisa junto ao grupo Rede experiência: narrativas e pedagogias da resistência, da UnB, e trabalha como revisor de textos acadêmicos e literários.

Antonio é autor de pequeno laboratório das coisas da vida (Patuá, 2021) e quase um manifesto (Patuá, 2023), este último o tema da nossa conversa. Você pode adquirir os livros através deste link. Caso deseje fazer contato com o autor, escreva para: acsobrinho83@outlook.com.

***

Hyago: quase um manifesto sai dois anos depois de seu primeiro livro, novamente por uma editora independente. Antes de adentrarmos nele, seria interessante saber como você percebe essas iniciativas e a poesia no mercado editorial contemporâneo. Te conhecendo, e mais ainda após a leitura do material para esta entrevista, me parece que publicar via selo independente se alinha com uma ética que você segue.

Antonio: Permita-me começar pelo trecho final de seu comentário.

Acredito que você tem razão em supor um alinhamento ético entre o que penso — e, por consequência, meus modos de ocupar espaços no mundo — e o fato de meus dois livros até então publicados o terem sido por uma editora independente, a Patuá.

No entanto, se eu não nuançar um pouco esta afirmação, corro o risco de talvez moldar — ou dar a entender — uma imagem que não corresponde exatamente à realidade dos fatos.

O que você diz parece-me correto para quase um manifesto, meu segundo livro, lançado em outubro de 2023, mas não — ou, pelo menos, não totalmente — para pequeno laboratório das coisas da vida, editado dois anos antes, em 2021. Em relação a este, a razão que me fez submetê-lo ao parecer da Patuá foi de natureza muito mais trivial, ordinária mesmo: a possibilidade de ser publicado.

pequeno laboratório das coisas da vida saiu pela Patuá porque o Eduardo Lacerda, ao contrário de outros editores, respondeu o meu e-mail e disse sim àquele livro. Não houve, e é preciso dizê-lo, nenhuma outra razão subjacente: a priori, nenhuma ética.

Reproduzido do site da Editora Patuá.

O mesmo não se coloca para quase um manifesto, livro que, desde a capa — aliás, agradeço publicamente ao Alessandro Romio, que a desenhou — apela para a força e para a beleza das existências menores, aquelas dotadas da potência de milagrar possíveis quando tudo, ou quase tudo, é vasto platô de impossibilidades. Trata-se de um livro que, ao meu ver, coincide bem com sua circulação via editora independente: parece-me que ambos, quase um manifesto e a Patuá, reivindicam políticas, se não de todo semelhantes, ao menos próximas — coincidência esta que talvez se exiba nos versos finais de “máquina de guerra”, um dos poemas do livro: pois a palavra / é força em disputa / e o poema / a minha máquina de guerra.

De fato, as editoras independentes, ao abrirem espaço e promoverem a circulação do texto poético, sempre tão rarefeita noutras casas editoriais, têm feito do poema a sua máquina de guerra, no sentido deleuze-guattariniano que este termo tem.

Acho que com isso, e de algum modo, já tangenciei a outra parte de seu comentário, aquela relativa ao espaço conferido à poesia no mercado editorial brasileiro. Porém, se já não me delongo demais nesta sua primeira questão, gostaria de dar maior precisão à palavra.

O fato é que as editoras independentes, muitas delas voltadas em maior grau para o texto poético, operam como pequenos furos por onde a poesia encontra o seu meio — se não de existir, porque ela existe a despeito de todo bloqueio — sem dúvida de fluir, circular, ganhar mundo. As editoras independentes são um dos meios de encontro — e, no que tange ao suporte livro, talvez o principal deles — entre poesia e público leitor. Assim, elas, as editoras independentes, abrem o real para que a poesia instaure as suas intensidades, as suas multiplicidades.

Diferentemente das grandes casas editoriais que, de antemão, rejeitam o recebimento de originais de poesia — mas não de outros gêneros — e apenas publicam poetas de circulação já estabelecida, que representam menor risco para a empresa, as editoras independentes não barram autorias desprovidas de publicação prévia ou algum tipo de consagração — um pré ou posfácio de intelectual/artista de (muito) renome; uma resenha favorável nas principais publicações brasileiras sobre literatura, algum prêmio obtido ou, mais contemporaneamente, ampla reverberação no mercado de likes e compartilhamentos das redes sociais. E isto muda tudo, não somente pelo gesto notável de dar a conhecer autorias antes impossibilitadas de publicar em livro (mas atuantes nas redes, nos blogs e nas revistas virtuais), como também, e principalmente, por pluralizar — em termos estético-formais e temáticos; geográficos, etários, étnicos, de classe, gênero e sexualidade, etc. — a poesia publicada no Brasil.

Eu diria que, se hoje é possível ler tantas e tão diversas autorias poéticas, muito se deve à comunidade de pequenos lampejos que as editoras independentes possibilitam, convocam e mobilizam.

H: Comecemos pelo começo: o título. Quase um manifesto evidencia, a partir de minha leitura do poema homônimo, algo como uma declaração dos atos que possam fundamentar a vida enquanto direito. Me fala um pouco sobre a escolha desse nome?

A: Esse livro teve muitos títulos provisórios. A maioria foi, mais cedo ou mais tarde, descartada. Alguns sobreviveram e passaram a identificar um ou outro poema. É o caso, por exemplo, de “do direito de ser festa ou poema que te prometi um dia”. O título retoma o poema “do direito à tristeza”, do pequeno laboratório das coisas da vida, para cumprir uma promessa nele lançada: uma vez feito o trabalho do luto, que compreende o arco daquele livro, ancorar o poema de novo na vida para então abri-la, multiplicá-la, afirmá-la em sua máxima potência.

Eis o plano geral de quase um manifesto: desobstruir fluxos desejantes para inaugurar — sempre e cada vez mais — vidas criadoras de si mesmas: exuberantes, afirmativas.

Trata-se de um plano político, dado que o mundo ao nosso redor é moldado para nos rebaixar a uma vida em vibração mínima, aderente às formas já instituídas e incapaz de instaurar a si mesma: uma vida alijada do que pode. Foi por este caminho que me veio a ideia de pensar o livro como um manifesto.

No entanto, se me agrada o encaminhamento político que a palavra “manifesto” comporta, assusta-me o que ela tem de peremptório, de programático, de sectário; desespera-me o que ela produz de força modeladora de formas conformes, fixas, repetidoras ad infinitum do mesmo de si.

Por isso, por esta minha restrição parcial ao termo “manifesto”, surgiu o “quase” — que eu talvez tenha roubado do livro quase uma arte, da Paula Glenadel. Enfim, trata-se de uma estratégia para reter uma certa dimensão da palavra “manifesto”, aquela que me interessa de perto, mas igualmente recusar a identificação total, fechada: esses poemas são uma manifestação política que briga pela possibilidade de instaurar uma existência, gesto afirmativo apenas possível em disposição alegre e que não compreende a priori nenhum programa e nenhuma forma já estabelecida: opera em devir, inaugurando possíveis.

“Manifesto”, portanto, em razão do teor de manifestação política que o livro abarca, mas “quase” para evitar que este manifesto, o manifesto deste livro, seja seguido de um corolário dogmático e universalizante.

H: O livro é bastante dialógico, os títulos de alguns poemas — convites, cartas, conversas — fazem sentir como se lendo um diário estufado de papéis e fotografias. É tudo muito delicado, mesmo nos poemas em que a verve política é mais explícita, como “máquina de guerra” e “carta aberta”. Essas são características da sua escrita ou algo que se desenvolveu especificamente para o segundo livro?

A: Parece-me, sim, que são traços — ou têm sido traços — de minha escrita, embora talvez intensificados em quase um manifesto.

Em relação ao que você reporta como dialogismo, acredito ser este um procedimento muito mais explícito no segundo livro do que no pequeno laboratório, embora igualmente presente lá.

Minha primeira publicação, apesar de também tratar de questões e lutos coletivos, como se vê em seu poema de abertura, “crônica do tempo presente”, é muito mais definida por um arco pessoal: o processamento poético de uma ausência que se faz na ainda presença do que já não está: a mãe. Neste sentido, reúne poemas que orbitam o centro gravitacional de um eu em luto.

Este já não é o caso de quase um manifesto, livro em que, mais do que um eu, assoma a presença — ou o desejo — de um nós, um coletivo, uma comunidade cintilante: não à toa, o seu primeiro poema, “dedicatória ou declaração pública de amor”, registra uma quantidade significativa de nomes — já carente de atualização para mais — aos quais dou as mãos por serem quem são, no caso de amores muitos próximos, ou em razão das obras que constituíram e que me atravessam, compondo uma vida em mim e comigo.

Penso que há sempre um tu e, por extensão, a possibilidade de um nós no horizonte de quase um manifesto. Trata-se de um procedimento que aponta para um desvio em relação à radical atomização do corpo coletivo operada pelo capitalismo neoliberal, como se o livro insistentemente organizasse uma reversão da estratégia de captura dos nossos corpos via fragilização de nossos devires comunitários, de nossas conexões íntimas. Contrário a qualquer processo de hiperindividualização como base de constituição dos sujeitos, quase um manifesto lança uma aposta no outro porque entende que apenas o outro nos sustenta em pé, que apenas com o outro é possível mobilizar forças alegres e então potencializar a nossa própria existência.

A rigor, não há um eu neste segundo livro — embora tal palavra apareça, sim, algumas vezes —, mas a reivindicação contínua de um nós: o desejo de formar comunidade. Por isso, as cartas, os convites, as conversas. 

(Escrevendo o parágrafo acima, noto que deixei de imprimir uma quarta epígrafe ao livro. Se ainda é possível corrigir este lapso, registro-a aqui: “O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.)

No que tange ao segundo aspecto, fico realmente feliz que os poemas desse livro tenham assim se apresentado à tua leitura. De fato, acredito na delicadeza como uma política do estar com. Ao falar em delicadeza, não suponho sua distorção em fragilidades nem a sua idealização em uma harmonia do tipo edênica. A primeira toma por delicado aquilo o que, pelas circunstâncias de sua existência, quase não sustenta a própria vida; a segunda, uma fantasia para sempre irrealizável. No lugar do que pressupõe a primeira, digo que a delicadeza é uma força que nos coloca em rota de mais vida, tanto para nós quanto para o nosso entorno. Tenho-a, portanto, como um elemento fundamental para a constituição de nossas comunidades. Pois, ao contrário de fantasmagorizar relações impossíveis, ela reivindica modos mais suaves de atrito entre os nossos corpos e entre as arestas que compõem os nossos corpos.

Penso em “O divisor”, de Lygia Pape, e no desafio gigantesco que aquela obra coloca em cena: como movimentar as nossas singularidades sem que elas se degenerem em individualismos estanques e rasguem o tecido social que nos conecta como um grande corpo coletivo?

Minha aposta, que é também a aposta do livro sobre o qual conversamos: incorporando uma ética da delicadeza a cada passo, a cada giro, a cada mudança de rota, a cada aproximação e, inclusive, a cada afastamento.

Em certo sentido, os poemas de quase um manifesto partem dessa premissa.

H: Com “ofertório”, poema de abertura, você estabelece a atmosfera ritualística que perdura no desenvolvimento do livro dispondo potências delicadas com as quais vai trabalhar. Me toca particularmente a analogia possível com a apresentação das oferendas em cerimonial religioso, momento em que os presentes podem também fazer suas contribuições, o que me faz pensar na tua relação com o mundo através da escrita. Em que lugar a poesia te faz se enxergar hoje? Há expectativas diferenciadas das que podem ter se colocado quando da publicação do seu primeiro livro?

A: Não. Tanto com pequeno laboratório quanto com este, quase um manifesto, a única expectativa que se colocou foi a de dá-los ao mundo, pois o poema é o modo mais forte que tenho de habitar o chão que me sustenta — e eu sinceramente acredito que não podemos dar ao mundo menos do que a voltagem máxima em que o nosso corpo vibra.

O poema mencionado por você aponta para esta perspectiva. Posicionado logo à entrada do livro, “ofertório” é um ebó feito inteiro de puro amor. Aos pés do mundo e de quem o lê, o poema oferece um relicário de miudezas // gotas de chuva pequena / e o ruído da terra / quando as aceita.

Eis o que ofereço neste livro: possibilidades de nascimento. Não tenho expectativa de o mundo as aceitar nem em relação ao que fará com elas, caso as aceite. Apenas de oferecê-las.

Em relação à tua primeira pergunta, peço desculpas, mas não sei respondê-la. É que eu não penso muito em termos de posição, linhagem, estilo, etc., mas em variações, fluxos, devires, experimentações. Posso sem dúvida te dizer autorias às quais dou as mãos, mas, além do risco de esta lista se estender muito, elas seriam tão diversas entre si que dificilmente se tiraria daí alguma conclusão coerente. Ademais, sou poeta de publicação recente e curta — dois livros e alguns poemas em revistas online, fora os inéditos. Talvez seja muito cedo para [alguém, não eu] avaliar onde se coloca o conjunto de meus textos — se é que eles merecem tal esforço e algum lugar. De coração, não é coisa que me preocupe.

No entanto, ainda no ensejo de sua pergunta, mesmo que a distorcendo um pouco, posso te dizer que a poesia não me posiciona como escritor — parte segmentada de um todo —, mas como um vir-a-ser no mundo, isto é, como uma totalidade para sempre inacabada, para sempre em processo.
A poesia é uma modalização da existência, não um ofício. Pela poesia me faço não só poeta, mas também leitor, também amante, também amigo e professor; me faço aquele que, apesar das pedras e mesmo por demais fatigado, continua em busca / de maravilhas / e borboletas.

A poesia circunda a minha existência e cria um modo poético de existir. Talvez seja esta a forma mais sincera de te responder, ainda que não tenha sido exatamente esta a tua questão.

H: Precisamos falar sobre a estrutura bem construída do livro e sua importância para torná-lo uma experiência diferenciada de leitura contínua. Um exemplo é a transição entre “apesar das pedras” e “carta pra adélia”: o primeiro aproxima o movimento das retinas ao dos pés na busca de “maravilhas e borboletas”, o segundo resgata esse recurso poético abstrata e concretamente, inaugurando o emprego da fotografia, a luz do sol atravessando uma janela — você potencializa a implicação com os efeitos do poema. Isso mexe na minha relação com o texto versificado, que é a da leitura mais compassada, mais lenta. Como foi o processo de escrita e preparação do livro? Esses movimentos sempre estiveram presentes nele?

A: Para responder a esta tua pergunta, talvez eu deva começar esclarecendo um ponto: o poema me acontece como escuta daquilo o que vem. Com isso, por favor, não entenda nenhuma implicação metafísica na construção do poema ou, muito menos, que eu esteja fazendo referência à ideia de inspiração — ambas são perspectivas que considero extremamente danosas. O que vem também não diz respeito a um acontecimento vindouro, mas àquilo que, ainda desprovido de linguagem, já se inquieta como força tal no corpo que este se coloca em disposição criadora. Para usar uma fórmula da Suely Rolnik, o poema é quando eu me coloco à escuta de “futuros em germe”, isto é, não um futuro para sempre protelado em amanhãs e cujas idealização e espera nos adoecem e imobilizam, mas um que vibra, lateja e pulsa desde o presente, desde o aqui.

Dito isto, vamos agora à tua pergunta.

No dia seguinte ao envio da versão final de pequeno laboratório das coisas da vida para que a Patuá imprimisse a primeira edição do livro, escrevi um poema, “carta pro josé”. Algo havia se modificado: aquele poema não se alinhava à mesma cepa de textos do pequeno laboratório: dizia outras coisas, apontava outras direções, convocava o vir-a-ser de um artefato outro, ainda inominado.

É óbvio que, àquela altura, eu não tinha ciência de que livro seria aquele, muito menos de como se daria a sua composição. Não havia um plano ou um argumento, sequer um conceito. Apenas um poema, “carta pro josé”, e a disposição de escutar outros poemas que certamente já vibravam no interior daquele primeiro, matriz. Em sequência, vieram “carta pro bandeira” e “carta pro amigo abu”, com os quais começaram a se delinear as linhas mais gerais de quase um manifesto: a ancoragem da vida naquilo que é força para mais vida: a presença alegre e mobilizadora do outro. Tratavam-se de poemas capazes de encontrar ali, onde é o começo / de todo começo: // o milagre / dos modos intensos / de vibração, como está posto em “cosmopoética”.

Então, surgiram os primeiros esboços: a organização por seções, uma lista de temas e imagens, um elenco de procedimentos, títulos, referências, etc. Nada disso ficou: indisciplinado, quase um manifesto se montou e remontou muitas vezes, sempre à revelia dos planejamentos que visavam suspender o seu livre acontecimento, prendendo-o a uma forma prévia e limitando o vir-a-ser dos poemas.

Escrevi uma seção inteira, composta por mais de 20 poemas, todos muito curtos, intitulada “post-its”. Esses poemas, dispostos em sequência numérica e recorrendo a uma simbologia cromática — post-it n. 1, verde-neon — constituíam uma espécie de salvaguarda contra o rebaixamento niilista da vida. Ao longo de quase um ano, desenvolvi os poemas para esta seção e experimentei possíveis variações. No entanto, toda e qualquer tentativa de articular os post-its com os demais poemas de quase um manifesto soava às vezes artificial, outras pueril; quase sempre esquemática. Desta seção, apenas resistiram “conditio sine qua non”, que abre o segundo conjunto de poemas do livro, responsável por investigar potências de vida em meio à sua própria (quase) falência, e as transições versificadas entre um e outro coletivo de textos. 

Outro exemplo: de início, os três poemas que compõem a série “procedimento de cura” seriam apresentados em sequência enquanto os três da série “agir” o seriam de modo fragmentado, dispersos ao longo do livro. Quando da organização final, deu-se exatamente o contrário: os poemas da série “agir” compuseram um bloco único e os procedimentos de cura espalharam-se pelo livro. Ao agrupar os poemas da série “agir”, penso ter ganhado em ênfase, o que me parece condizente com a proposta daqueles textos. Já ao fragmentar a série “procedimento de cura” — inclusive dispondo-a ao longo de dois conjuntos distintos de poemas —, quis que, na repetição de sempre voltar ao movimento de cura, estivesse aí encenada a guerra que a minha poesia trava, de modo recorrente, contra os afetos de tristeza. Refiro-me aos afetos de tristeza mobilizados por uma política de rebaixamento e controle de nossos corpos, afinal, corpos tristes não fazem revolução. Não àqueles ocasionados incidentalmente pelo giro dos dias e cujo tempo precisa ser vivido em sua exata duração.

De modo mais geral, e sempre a posteriori, os poemas se organizaram em torno de alguns núcleos — daí, talvez, a sua percepção de um certo desdobramento na passagem de um a outro texto.

Os três primeiros, “dedicatória ou declaração pública de amor”, “ofertório” e “modus operandi” constituem a entrada de quase um manifesto e evidenciam três linhas do livro: o movimento de composição de um nós, a potência de corpos/gestos/modos menores e a insistência em criar alegrias, mesmo quando impossíveis.

Em seguida, quatorze poemas — de “carta aberta” a “quase um manifesto” — configuram um conjunto de textos em disposição solar. O que está em jogo aqui é a potência dos afetos alegres como força de reorientação dos corpos em torno da afirmação de si mesmos. “carta pro amigo abu”, “sina”, “do direito de ser festa ou poema que te prometi um dia” e “essa coisinha assim toda miudinha” parecem traçar as linhas percorridas pelos demais poemas desta seção: uma definição daquilo o que chamo de vida em modo forte, noção esta que sustenta todo o livro; a recusa à produção de morte, mesmo quando esta parece ser a única possibilidade, a celebração de um corpo, quando afetado de alegria, e o efeito de revolução que este afeto é capaz de engendrar.

carta pro amigo abu

abu querido
se você provocasse
eu te diria:

vida
  é quando pequenos encontros
     se fazem irrepetíveis

caso insistisse
eu te diria:

vida
  é quando forças movem
    a alegrias incríveis

se não satisfeito você instasse
         ainda outra resposta então
eu te diria:

vida
  é quando o sim roça
   a pele dos possíveis

e nos abraçaríamos

Na sequência, vinte poemas compõem uma seção que procura investigar potências de vida no ponto dramático em que ela própria, a vida, está prestes a falhar. Os poemas “do que mamãe ensinou” e “com deleuze, no terceiro andar” parecem-me os mais emblemáticos deste movimento. Trata-se de uma operação de recolha das forças que se arrojam das cenas e dos instantes capturados para, em comunhão com elas, quiçá um dia “brincar carnaval”, como digo no poema “carta pro bandeira”, o qual encerra este momento de quase um manifesto.

Seis metapoemas — ou quase metapoemas — formam o conjunto seguinte. Nesta seção, o poema dobra-se sobre si mesmo para revelar-se não como forma, mas como força: um artefato, uma máquina de guerra: criação de linguagem para instaurar possíveis que a língua nossa prosaica sequer alcança imaginar, quanto mais dizer.

O último conjunto de poemas é composto por oito textos, os quais investigam a emissão de lampejos por corpos menores dotados da capacidade de acionar devires-revolucionários.

O poema que encerra quase um manifesto, um post scriptum intitulado “pequena memória familiar”, foi de fato produzido após o livro estar praticamente pronto, sendo incorporado a ele apenas às vésperas do envio final para a editora. Este é o poema mais longo da publicação, dividindo-se em oito partes em que o particular — a história de uma família — e o coletivo — a tragédia de uma nação — se entrecruzam em atos de guerrilha contra a ditadura, o esquecimento e a possibilidade plúmbea de retorno a 64.

H: Aproveitando a fotografia em “carta pra adélia”: a recorrência das imagens de janelas tem peso significativo. Várias vezes te imaginei escrevendo os poemas do livro sob ou observando uma janela. O que essa construção, esse objeto-imagem representa para você?

Fotografia do meu exemplar com algumas anotações.




A: Essa é uma pergunta muito bonita, Hyago. Muito obrigado por ela.

Janelas ocupam parte importante de meu vir-a-ser no mundo: faço-me quase por inteiro delas, poucas são as paredes sólidas no fundamento de mim — e mesmo estas, quando há, são por demais porosas. 
Janelas são pontos de passagem, pequenos espaços por onde mutuamente se invadem o dentro e o fora, a casa e o mundo, o eu e o outro.

Janelas são pontos de indecibilidade, pequenos espaços em que a lógica das identidades se desorganiza e os corpos acionam devires. Lugares onde os binarismos dentro e fora, casa e mundo, eu e outro se desfazem naquilo que não é a soma nem o amálgama, mas suplemento imprevisível que deriva do encontro: denfora, casundo, eutro, eule, eula.

O que mais importa em uma janela não é bem a paisagem que ela emoldura, pois todas têm o seu quinhão de estremecimento, mas o convite à expansão que ela repõe sempre que aberta. Do outro lado de uma janela, há possibilidades de existência que o lado de cá é incapaz de conceber ou arriscar sozinho, tremores que podem reconfigurar nossas formas mais ordinárias de vida. 

Veja: quando uma janela é fechada, porque assumimos monstros à espreita — e a produção de medo é uma estratégia eficaz de controle do nosso devir —, um possível, um vir-a-ser se perde, pois tudo resta encerrado na mesmidade das paredes e o mundo / já não consegue / mais ventilar o teu sonho / nem teu sonho, / o mundo, como está em “nossa conversa sobre janelas”.

Disposição oposta registro no poema intitulado “quase um manifesto”: vivo porque me encanto / das coisas do mundo // e me comove a beleza / daquilo o que me invade. Trata-se disso, saca? Uma aposta nos buracos que abrimos em paredes e muros e, sobretudo, na potência que eles têm de fazer o mundo roçar o meu corpo e o meu corpo, o mundo.

H: “cartinha de amor” é um dos meus poemas preferidos. Traz senso muito particular de localização guiado por experiências íntimas, agrega referências ao vodum, recusa o epidérmico e convida para o mergulho nesse lugar que só é acessível aos que se querem amantes, não apenas na acepção comum do termo. Como você percebe essa dança entre amor e sacralidade na sua poesia?

A: Esta é uma questão que apenas se coloca agora, em função de sua pergunta. De fato, nunca pensei “cartinha de amor”, nem qualquer outro poema meu, a partir dos termos em que você os lê, a dança entre o amor e a sacralidade. Entendo que você talvez a acione em função de certos usos lexicais que dizem respeito ao meu lugar religioso, o candomblé — feitiço, encruzilhada. Pergunto: tal leitura se sustenta na ausência de informação prévia acerca de minha fé? Não sei: é uma dúvida.

O que posso te dizer com certeza é que este não é um efeito procurado — ao menos, não do ponto de vista do traço racional que ancora o processo de escrita na consciência. O amor é um motivo mobilizador de minha poesia, sobretudo em virtude da potencialização do ato de existir que ele acarreta — o amor não produz e nem pode produzir tristeza; esta apenas se origina de afetos contrários e em descompasso com o amor. Mas o sagrado, salvo em incidências bem pontuais, não me parece tão presente assim, ao menos não no que escrevi, publiquei e não publiquei até agora.

Em todo caso, você me fez pensar — ou talvez elaborar algo que li algures sei lá quando — que o amor pressupõe, sim, algum quinhão de sagrado ao mesmo tempo que o repele, sendo-lhe de certo modo contrário.

Digo algo de sagrado de maneira alguma acedendo a uma noção metafísica de amor, mas referindo-me à sua capacidade corpórea de abrir e multiplicar planos em quem ama, isto é, de convocar infinitos e delicados modos outros de vir-a-ser. Penso, por exemplo, no conto “Veridiana”, de Lande Onawale. Porque se amam, ainda que não saibam chamar amor o que experimentam, Romão e Veridiana deslizam: descobrem-se súbito em diferença de quem eram: milagram ternuras. E o que é o sagrado — ou a força do sagrado — se não esta possibilidade de afetar o real para que nele, a despeito de tudo, venha à tona o improvável, às vezes mesmo o impossível?

Então, sim, talvez o amor dance com o sagrado.

Porém, não se trata exatamente de uma dança calma, rosto no rosto, daquelas que suspendem a azáfama do mundo. O sagrado, por sublime, aparta-se do comum: não raro, coloca-se acima. Sagrado — tanto na sua forma substantiva quanto na adjetiva — é palavra que aciona certo distanciamento: aquilo que o é, mesmo não sendo esta a sua vontade, se faz — ou é feito por nossos ritos e cultos — à parte do resto de nós.

O amor, então sendo um dínamo de aproximações sem fim, talvez seja uma força de profanação do sagrado. Quando digo isso, não me refiro ao amor como algo iconoclasta ou blasfemo: o amor não quer destruir ou ofender o sagrado, mas restituí-lo ao chão do comum de nós; recuperá-lo não como objeto distanciado de culto e veneração, mas como milagre no aqui dos corpos. O amor aciona o sagrado naquilo que é a sua presença em nós, engendramento de mais vida. Para tanto, ultrapassa a dimensão de sacralidade com a qual nós, ao longo da história, o revestimos: toca a sua carne, irradia-se de seu calor, bebe de seus fluidos.

Pensando por esta perspectiva, e ressalvando que continuo sem saber se minha poesia a contempla, digo que, sim, talvez o amor dance com o sagrado.

H: A música é um aspecto muito presente no livro. Há um zelo evidente pela sonoridade nos poemas, também atravessados por epígrafes e referências — Edy Star, Johnny Nash, Ana Frango Elétrico, Sandra de Sá, Bee Gees e BaianaSystem, estão todos lá. Os poemas “procedimento de cura I” e “II” remetem à música como instância de possibilidades, de força e de suspensão, quando necessário. Gostaria que falasse um pouco sobre a influência da música na escrita de quase um manifesto.

A: Se você observar com bastante atenção, perceberá que, muitas vezes e sem qualquer razão aparente, levo a mão direita mais ou menos à altura do quadril e alterno movimentos rítmicos, ou nem tão rítmicos assim, com os dedos indicador e médio. Você não ouvirá som algum, nem poderá adivinhá-lo marcando o fora do tempo do pizzicato, mas ali haverá uma canção.

Há sempre uma canção, ainda que ninguém mais a ouça.

Em um texto que publiquei recentemente, “Comer da fome de Quincas, ou, para instaurar outros modos de existência”, comento en passant a respeito da forma com que processo os acontecimentos do mundo: traduzindo-os nas canções que ficam.

As referências às canções, bandas, cantoras e aos cantores presentes em quase um manifesto, além de constituírem um procedimento para a composição de uma comunidade, derivam naturalmente de suas presenças orgânicas inclusive no absoluto silêncio de mim: ali, onde já não há qualquer palavra, ainda resta o eco distante de uma melodia, de um solo, de uma linha de baixo recriando a linguagem em que venho a existir. Portanto, penso que você diz bem: “instância de possibilidades, de força e de suspensão”.

H: Em “do que mamãe ensinou” a voz poética se encontra com o tempo através de aspectos físicos dos quais o corpo não escapa, ao mesmo tempo em que prefere observar a potencialidade, a força do gesto cotidiano da mãe que permanece de pé para regar as plantas. Esse texto abre uma série de poemas sobre a finitude da vida, e/ou de elementos na sua órbita, que introduz o espaço de reelaboração dos lutos individuais e coletivos. “p.s. pequena memória familiar”, última seção-poema do livro, trabalha em 8 partes perdas, das mais diversas naturezas, diretamente ligadas à Ditadura Militar no Brasil das décadas de 1960 a 1980. A avó que enfrentou inúmeras vezes o risco de morte pelos próprios filhos, as vassouradas, os disfarces da tia, o recorte de jornal, enfim, a escrita como faca. Para finalizar, gostaria que falasse um pouco desses poemas.

A: Você os sintetizou brilhantemente.

Eu diria que ambos são, cada um à sua maneira, poemas políticos. Entendo que esta afirmação é muito mais evidente quando se refere a “p.s. pequena memória familiar”, uma vez que este texto articula uma resposta à produção sistemática de horror promovida pelo país que nos serve de pátria, em especial, à tentativa de (re)apagar o nefasto da ditadura, reescrevendo-a em termos positivos ou como possibilidade e desejo de retorno. A qualquer pessoa, sobretudo àquelas que se arrogam “de bem”, tal aspiração deveria soar como um insulto ou doer como um soco, causar indignação e repulsa, fomentar revoltas, operar levantes – no entanto, o que de fato se viu, num misto de espanto e terror, foi o 8 de janeiro de 2023.

A mim, então, rebento de uma família indelevelmente marcada pela dor dos anos de chumbo, herdeiro de um nome de quem ainda hoje é considerado como desaparecido político, filho de pai duas vezes preso e inúmeras vezes torturado, sobrinho de tia perseguida pelos quatro cantos do país e neto de uma vó atravessada por toda sorte de violência, cabe não fazer coro ao silêncio. Se o poema é a minha “máquina de guerra”, se com ele ativo arco-íris particulares, é também com ele que guerrilho contra as trevas de meu tempo: é também com ele que digo não, quando dizer sim significa anuir ao horror.

Gosto de sua expressão, a escrita como faca. Lembra-me um amor que tenho, Belchior, em a palo seco: e eu quero é que esse canto torto / feito faca corte / a carne de vocês. Sim: é um poema que se quer agudo e cortante, porque às vezes é preciso abrir a ferida que já há, fazê-la sagrar, talvez, inclusive, suporar para que então o corpo reaja, levante-se e debele a infecção.

Também político é “do que mamãe ensinou”. Decerto, não é um poema-faca, como se apresenta o post scriptum, mas nem todo ato político precisa ser a palo seco, não é mesmo? A política deste segundo poema se coloca como instauração de uma ética que procura intervir na vida em favor de mais vida, mesmo quando em condições improváveis.

Mamãe faleceu em 30 de janeiro de 2015.

Em seus últimos anos, a saúde foi paulatinamente declinando. Frágil, fragilíssima, qualquer esforço custava-lhe muito aos pulmões. Saía pouco de casa. Quando muito, passava algum tempo sentada na portaria do prédio onde morávamos, no Largo Dois de Julho, em Salvador: era querida e gostava de conversar com Raimundinho, amigo nosso e porteiro de longa data do Vista Bela: conheciam-se desde o início da década de 1980.

No final de 2014, aquilo que até então se apresentava como um declínio constante, mas lento, acelerou. Em dezembro, recebemos em casa a visita de pessoas que amávamos muito, porém mamãe pouco se levantava da cama ou mesmo interagia: cansava demasiado, sentia dores.

Recordo-me, no entanto, de uma manhã de janeiro em que dormi um pouco mais do que vinha dormindo naqueles dias. Ao levantar, a encontrei em frente à jiboia que tínhamos na sala. Por tudo que então acontecia — sobretudo, a piora de mamãe e as demandas do doutorado —, eu havia me descuidado da rega das plantas ao longo daquelas semanas. A jiboia que me viu nascer então espelhava minha mãe: definhava. Com uma jarra improvisada de regador, mamãe lentamente aguava a jiboia e também as demais plantas que tínhamos, indo de uma a uma e recusando a minha ajuda, como se eu a atrapalhasse naquele momento em que a via viva. Ao cabo daquela meia-hora de bonitos cuidados, que seria menos que dois minutos caso ela me permitisse substituí-la, perguntei a razão do esforço.

Porque há de ter vida nesta casa, meu filho.

De todas as memórias que tenho de mamãe, é aqui, nesta cena, em que eu mais a vejo: essa coisa incrível de ainda cuidar da vida, alimentá-la para que se expanda, mesmo quando tudo é a incontornável proximidade da morte.

É isso, sabe?

“do que mamãe ensinou” toca este quando eterno em que ainda me encontro com ela.

do que mamãe ensinou

a atrofia
visível
dos músculos

a fragilidade
intermitente
da voz

o nó
fumacento
da tosse

e o passo
curto
dos pulmões

a tensão
ciclotímica
do humor

o prumo
instável
da espinha

o movimento
trêmulo
das pernas

e a lonjura
insondável
das pupilas

assim eu te vi
e te vejo contudo
noutra cena:

o teu esforço
de ainda aguar
o verde das plantas




um poema, mesmo último



o último poema
não virá como
último poema

virá como esse
ainda outro
vindo a ser

se no susto
e a contragosto
for feito último
que importa?

um poema
(mesmo último)
apenas sabe
fazer nascer

domingo, abril 28, 2024

Ano Litúrgtico, meu segundo livro de poemas, está em pré-venda!

"Entre o erótico e o sagrado, Hyago Marques reelabora a mística do verter, do porejar de êxtase, de luto, de cólera. Neste Ano Litúrgico — e febril —, a leitora tem à sua disposição um léxico e artefatos ritualísticos quase palpáveis, além de um delicado convite para ser cúmplice." — Release do livro. 


Capa "final" do livro, com ilustração também de minha autoria

Em meio à infinidade de coisas com as quais tenho me ocupado nos últimos meses — a criação e edição de uma revista do zero, as disciplinas da licenciatura e os prazos cada vez mais estreitos para minha qualificação, além do volume de trabalhos domésticos e de cuidados —, finalmente consigo retomar as publicações no blog. E com novidades: a pré-venda do meu segundo livro, Ano Litúrgico, a ser lançado já em maio de 2024.

Ao contrário de muitas escritoras que acompanho, que relatam em entrevistas e newsletters o fato de seus trabalhos nascerem como projetos, meu novo livro confirma a tendência apontada pelo primeiro: esses textos têm seus próprios tempo e vontade para decidir quando e se querem ser publicados. Meus processos com poesia são bastante diferenciados do que experimento em outras artes, onde consigo atuar de forma mais administrativa, na falta de termo melhor, sobre o início, o fim e o meio.

Mas na literatura, especialmente na poesia, os textos se impõem. Nunca planejei um livro tomando determinado tema como mote e desenvolvendo os poemas a partir dele. Muito pelo contrário, escrevo, me distancio e releio com o olhar de quem busca aperfeiçoar o material, mas também entender as conexões possíveis e que antecedem o desejo de tê-los agrupados em publicação. E o Ano Litúrgico é um exemplo claro disso, pois, ao contrário do anjos tocam lira nas molas do colchão  (2021) — que englobava textos de diversos anos  —, concentra produção elaborada em curtíssimo tempo, de meados de 2023 ao início de 2024.

Sem pretensão de publicar outro livro, entre as aulas de Literatura de Língua Portuguesa V, ministradas pelo antonio carlos sobrinho (Pequeno laboratório das coisas da vida e quase um manifesto (Patuá, 2021 e 2023, respectivamente) em 2023, alguns dos novos poemas nasceram sob influencia dos conceitos de literatura do trauma, memória e contemporaneidade. Coincidentemente, foi tambémesse ano em que minha irmã saiu de casa e eu me vi com uma série de coisas para reelaborar. Eu escrevi muito sobre irmãs, até vislumbrei um livro com o exato título Irmãs.

Foi um período no qual, mesmo atravessando a distância de minha irmã e melhor amiga como fator determinante na minha escrita, observei uma reaproximação com o sagrado. Eu busquei alguns livros canônicos para investigar a amizade, até que me deparei com o Cântico dos cânticos, totalmente destoante do que procurava e muito peculiar. Daí até a poesia de Adélia Prado e Raquel Naveira, leituras que me encaminharam muito confortavelmente à investigação do liame entre sagrado e erótico, foi um caminho curto . Revisitei ainda, e com muito prazer, Adília Lopes, mas uma das principais influências nesse processo foi mesmo a obra de Olga Savary. Lembro de ter devorado todo Repertório Selvagem em pouquíssimos dias, tão difícil a tarefa de largá-lo.

Não posso deixar de citar como mais uma entre as grandes influências dessa nova publicação o Livro da vida, de Santa Teresa D'Ávila (Penguin Classics; Companhia das Letras, 2010), particularmente a passagem em que narra a transverberação, e a obra de Bernini, Êxtase de Santa Teresa (1645-1652), para vários poemas e também para as ilustrações que os acompanham — todas de minha autoria.

O que me atrai nesse corpo de autoras é o aspecto religioso fortemente presente em seus textos, mas não de forma tradicional. Há uma permeabilidade do erótico, em alguns casos até uma aproximação do  profano, processada no cotidiano. São vozes poéticas assumindo lugares bem definidos, possuidoras de conceituações do erótico e de Deus em uníssono, ou mesmo em denúncia. E foi assim, a partir de uma proposta de trabalho final na disciplina citada anteriormente, que percebi a urgência de dar vazão a uma voz poética febril. Tudo se desdobrou muito naturalmente.

Estudando Hilda, Adélia e Raquel.

Além disso, fiz mais algumas leituras do Cântico, o belo e na mesma medida polêmico texto canônico cristão. A alegoria de noivo e noiva como Deus e a Igreja me fez pensar bastante, mas o rigor claramente carnal presente nos versículos me fez caminhar por outra leitura e, ainda que de forma muito sutil, adensar as trincheiras das que buscam sangrar o cânone. Ao que adicionei um “fermento muito pessoal”, como diz um amigo vez e outra.

Quando revisitei meus cadernos em busca do que já tinha escrito, os textos dialogavam entre si com cólera, luto e despersonalização. Aparentemente distanciados, tinham como elemento aglutinador o erotismo. Daí meus olhos conversaram com as páginas, meus ouvidos passaram a escutar o que tinham a dizer, como queriam ser dispostas e organizadas.

Esse estalo não só me fez perceber que ainda não era o momento para escrever sobre irmãs, ideia que de forma alguma jaz abandoada, tampouco o de retomar outro livro, esse sim aproximando-se das características de projeto e que por isso mesmo, suspeito, tenha estancado há tempos, como sabem amigas mais próximas. O que escrevi nesse prisma segue decantando, aguardando pacientemente o momento certo de vir ao mundo.

Planejo escrever um pouco mais sobre o Ano Litúrgico e seus processos, seu projeto editorial e gráfico, que assino novamente, e, quem sabe, dos percalços enfrentados na publicação independente. Até lá, deixo aqui as informação para quem quiser comprar na pré-venda (comprando nesse período você me auxilia com alguns custos burocráticos de edição, além de garantir desconto exclusivo da pré-venda).

Não posso deixar de dizer que o livro será produzido artesanalmente, em tiragem única e exclusiva, limitada a 50 exemplares numerados e costurados à mão.

Abaixo você pode conferir um dos poemas que estará presente no Ano e também os preços, frete e opções de pagamento (a venda do livro é feita exclusiva e unicamente por mim):


tigre [v. 2, 5 mar. 24]

(para a.)


todos os dias

o tigre branco corre

sozinho a savana

da memória


todos os dias

     sento aqui

longe do olhar de j

para ver o tigre

de juba castanha

     desalinhada

escrevo os poucos

pelos em seu peito

até o terceiro botão

terceiro mistério


o tigre corre      aqui

níveo e na boca

ao invés de um naco

de minhas ancas

ruge luz

e no dorso nevado manto

e na fauce guias

e as sextas para os santos

nunca para mim.


não é comigo que deita

cansado do páreo

do script

do rush diário

após caçar vagalumes


não é minha a chama que abranda

no ardor da malícia

embora o aqueça


todos os dias

o tigre branco corre

______ a savana

minha memória


e todos os dias

com seu nome sob quartzo rosa

     sento aqui

para vê-lo passar.


Preço à vista R$ 60 (frete incluso para todo o Brasil) ou R$ 50 (para pessoas de Alagoas, com entrega em mãos).

Formas de pagamento: PIX ou cartão de crédito (via link de pagamento) em até 12x*

Você pode fazer o pagamento via PIX para: hyagocmarques@gmail.com e enviar o comprovante para o mesmo endereço de e-mail. Vou te responder confirmando o recebimento.

Para pagamentos no cartão ou contato, por favor escreva para hyagocmarques@gmail.com ou para o meu Instagram, solicitando o link de pagamento.

Atenção: os envios dos livros comprados na pré-venda iniciam em maio.

*com acréscimo da mediadora [consultar valores]. Os pagamentos com cartão de crédito, à vista ou a prazo, são exclusivos para bandeiras Visa e Mastercard.

domingo, abril 30, 2023

Aprendendo a lidar com escolhas (as próprias e as de outras): uma resenha de “A filha única” de Guadalupe Nettel

Há sempre vivências das quais só é possível fazer parte por meio de uma posição muito específica, por vezes restrita à observação, e que pode incidir no conforto da visão autocentrada. Isso acaba sendo comum na relação de homens com a maternidade, que tende a ser observada nesse meio sem todos impactos da experiência para a mulher. Da mesma forma, há sempre a possibilidade de participar desse momento desenvolvendo respeito, sensibilidade e empatia.

Assim, quando o foco é a relação mãe-filho, qual posição nós mesmos e os homens ao nosso redor costumamos assumir? Como podemos entender o nosso lugar ― seja como pais, filhos, irmãos ― diante do processo da maternidade? E, acima de tudo, como enxergamos a relação das mulheres ao nosso redor com a acolhida ou a recusa da experiência? O que é possível aprender a partir desse movimento?

Em A filha única (Todavia, 2022), a mexicana Guadalupe Nettel ― vencedora dos prêmios Antonin Artaud, Gilberto Owen e Anna Seghers, finalista do Herralde ― oferece ao público leitor não só uma, mas três oportunidades de redimensionar o olhar externo para a maternidade. A partir das histórias de Laura, Alina e Doris, o romance apresenta diferentes perspectivas sobre essa vivência, trazendo aspectos comumente enevoados no imaginário popular pela mística da abnegação que paira a figura da mãe. E nesse contexto a preocupação com enxoval, móveis decorados e cor da parede abre espaço para escolhas de outra natureza, a das expectativas, das frustrações e do medo como problemas com os quais a mulher pode lidar de forma constante no quesito (não) ser mãe.

Acompanhamos a trama pelos olhos de Laura, mulher independente na casa dos 30, feminista convicta que decide retornar para sua terra natal após se submeter a uma laqueadura. Trata-se de opção interessante para a narração, pois demonstra como a decisão de não ser mãe influencia seus modos de perceber e lidar com os dilemas enfrentados pelas demais. Na relação com Alina, por exemplo, a recém-operada dispensa cuidados diferenciados, típicos da convivência compartilhada desde a infância, mas isso não a impede de projetar na melhor amiga os próprios receios, quando esta revela o desejo de engravidar. Nettel costura com precisão as relações entre as duas personagens, com intenções já bem demarcadas ― Laura intervém no próprio corpo para não ter filhos, Alina faz o caminho contrário.

Mediante procedimentos de inseminação, são diversas as tentativas até que Alina finalmente consegue engravidar. Dentre as três personagens principais, é através desta que a escritora latino-americana explora os efeitos da maternidade em sua dimensão processual, do início ao inesperado desfecho reservado para a nova gestante. Alina vivencia o abalo do desejo de ser mãe com um choque de realidade que se desdobra a ponto de deixar em suas mãos uma das escolhas mais difíceis no livro.

Concentram-se aqui o fato da personagem em questão ser casada ― via explorada pela autora para dar as nuances da maternidade inserida nesse contexto, trazendo aspectos relacionados à sororidade, autoestima e ciúmes ―; o desenvolvimento de um quadro de ansiedade associado ao consumo; e uma ambientação hospitalar que nos aproxima do incômodo das sensações. A interação médicos-paciente, inclusive, é outro ponto preciso da narrativa, que dela se apropria para navegar a disparidade das posturas de médicos e médicas diante de certo diagnóstico. Quais os limites entre a ética profissional e a sensibilidade de quem compartilha vivências?

Se Laura e Alina são o antes e o durante, Doris é o depois ― vizinha de Laura, é uma mulher viúva e mãe solteira que se vê às voltas com o filho Nico e seus acessos de raiva. Aqui a premiada autora se apropria da relação mãe e filho propriamente dita, conferindo a ambas as partes os resquícios de uma presença masculina violenta, cujos ecos ultrapassam os limites entre vida e morte, e tenciona os arranjos familiares tradicionais. Abre-se o espaço para a narradora, que assume o papel de mediadora de conflitos ao se aproximar de Nico na tentativa de aliviar minimamente o sofrimento de Doris. O modo como a figura de Nico “penetra” sua opção por não ter filhos é curioso, pois, embora o garoto personifique, em alguma medida, tudo de que abdica com a decisão, Laura nutre por ele um carinho especial que a faz considerar a possibilidade de "adotá-lo" em certa altura do livro.

Reforçando a afirmação de Virginia Woolf em Um teto todo seu, Laura opta por viver sozinha num apartamento para finalizar a escrita de sua tese de doutorado, ao invés de ficar com a melhor amiga ou mesmo com a mãe. Aliás, a trama se apropria da relação mãe-filha para identificar a incidência da maternidade idealizada também nesse âmbito, de modo que Laura compartilha reminiscências com a própria mãe. Esta que, alarmada pela notícia da laqueadura, se encontra com a ideia de não ter netos correndo por sua casa e vislumbra na relação da filha com Nico a concretização desse desejo.

Laura é a linha de costura na agulha de Guadalupe Nettel. É o fio condutor da trama, perpassando e experimentando, a partir de sua negação, a maternidade de diversas perspectivas. Tê-la como narradora enriquece o texto, tanto pelo frescor que confere à narrativa, desassociando-a do ideal de maternidade comumente reproduzido nos livros que se propõem uma abordagem mais superficial quanto por situar a discussão sob uma visão crítica.

Por tudo isso, para além dos contextos isolados a partir dos quais a leitura nos move a repensar o ato de (não) ser mãe, a posição tomada por Laura funciona como uma metáfora para o “olhar de fora”. Nesse sentido, trata-se de uma leitura que contribui para interromper o ciclo de naturalização da maternidade como requisito para que as mulheres se sintam felizes, plenas e completas, que invalida qualquer decisão contrária a essa estrutura.

É interessante como Nettel explora ausências e presenças masculinas, posto que são poucas as personagens do sexo masculino no texto. E essas “presenças” também são aplicadas como algo de uma metalinguagem, de modo que leitoras e leitores atentos as entenderão como mais um recurso muito bem aplicado. Através de presenças residuais e resquícios fantasmagóricos, ressalta a premência do olhar que toma a mulher como sujeito de direito e da promoção de apoio em suas decisões, bem como no questionamento da maternidade como única via de realização, como vivência que ratificaria a experiência de ser mulher.

Assim, A filha única constitui-se um convite para sairmos da zona de conforto, entendendo o quanto as mulheres têm tido o espaço relativo às decisões sobre seus corpos, seus caminhos e o curso de suas vidas negligenciado pelo poder público, pela sociedade como um todo e, muitas vezes, por aqueles mais próximos delas. É uma obra incisiva, um livro que todos os pais, filhos, irmãos e maridos deveriam ler para repensar privilégios, posturas e comportamentos ― esforço necessário no sentido de superar posicionamentos que reforcem os tabus em torno da mulher e da maternidade.